Minha mulher anda na calçada com uma desenvoltura que me assusta. Os pés se movimentam em perfeita linha reta. As pernas se retesam, dobram e depois lançam os escarpins à frente, apoiando-se firme para o corpo que vem atrás. Os tornozelos não vacilam. Nus, mostram os tendões avolumados pelo esforço e um pouco acima as filigranas das veias se infiltram na batata da perna. Os joelhos, ora expostos, ora ocultos pela barra da saia, brincam na luz matinal vinda dos vãos dos prédios, iluminando as canelas em tons de azul ou vermelho. As fendas laterais, pespontadas com fio da mesma cor do tecido, deixam ver, vez ou outra, na cadência da caminhada, metade das coxas brilhantes e carnudas. As ancas, levemente curvilíneas, moldam a saia colada às nádegas até o cós em que um cinto fino de couro rodeia a pele clara da cintura. Dois centímetros abaixo desse equador começa a calcinha que, feita de elastano, algodão e bordas de renda costuradas com esmero, encobre um pequeno triângulo aparado de pelos pubianos e, na retaguarda, segue as reentrâncias da bunda, ocultando-se a quem olhar com volúpia. Acima dessa latitude, uma camisa de linho faz ondas em toda circunferência do cinto. Nem um único botão, mas entreabre-se em decote trapezoidal, sustentado por duas alças amarradas aos ombros, mostrando o duto entre os seios apertados no sutiã de acabamento semelhante à calcinha. No pescoço traz uma correntinha de corais. O queixo empinado parece ritmar o movimento dos braços longilíneos e dos cotovelos estreitos. Um par de pulseiras de prata tilinta no punho marcado de cicatrizes e dança sobre certa flacidez da pele nas costas da mão. O rosa forte nos lábios foi roubado do céu em que o sol amanhece. E o vento matutino, ao limpar os cabelos do rosto, entalha do nariz às sobrancelhas um só traço, sobressaltando os olhos matizados e líquidos.
Quem a vê, assim, toda manhã, não imagina que seu coração, no entanto, está vago e que eu poderia preenchê-lo com a minha solidão que aterrissa da madrugada. Essa mulher não é minha, embora seja. Virará a esquina logo adiante, pegará o elevador ao décimo andar e entrará no escritório. Sua exuberância sempre encantou do porteiro ao diretor. Percorrerá o longo caminho de armários e estantes até sua sala, onde uma imensa vidraça abre-se à vastidão da avenida principal. Atentará ao dia ensolarado, às nuvens se avolumando atrás do viaduto, ao rastro de um jato riscando feito giz e, aos poucos, vasculhará aleatoriamente, pelas linhas verticais de cimento, cada janela aberta no alvorecer. Descobrirá ao acaso um casal se beijando na cama; um moleque espantando a mariposa presa nos caixilhos; uma família saboreando o café da manhã aos tapas; um senhor, aflito ao parapeito, procurando na cidade lugar que acolhesse sua personagem recém-criada no teclado; a sombra de alguém tomando banho com gestos amplos de cantor; um jornaleiro grandalhão discutindo com o mendigo mirrado; um guarda acompanhando o rebolado da balconista. Mas aí, ela recordará que uma vez foi ao campo, dirigindo sozinha por uma estrada comprida e retilínea, e ao mirar as vastas plantações de milho em que o horizonte era extenso e verde, o mundo pareceu-lhe abstrato e distante. Embora o olhar se apaziguasse, as artérias pulsavam forte e o fôlego começou a falhar. Parou no acostamento, abriu a porta em desespero e saiu em direção ao milharal. Um instante antes de descer um curto talude, olhou mais uma vez o horizonte e, agora, nuvens acinzentavam a abóbada azul. Entrou na plantação que a sobrepujava. As folhas picaram como lâminas. Os ombros ficaram pontilhados de vermelho e os braços pincelados do escorrer do sangue. Estacou, aproximou-se de um dos pés de milho e arrancou uma espiga. Descascou-a com desejo. Viu o tufo de seda encobrindo as carreiras de grãos gordos. Afastou ainda mais o cabelo que a vestia, sentiu a proximidade sufocante daquela planta viva e mordeu ferozmente. Arrebatada, engoliu grandes bocados. Repetiu inúmeras vezes, sem se dar conta que sua ânsia se arrefecia. Ergueu a boca cheia e sentiu na brisa que soprava o cheiro de chuva. Voltou a abocanhar a espiga ainda com fome, mas um trovão próximo assustou-a. Jogou o sabugo e correu para dentro do carro. Ficou paralisada por longo tempo. Gotas enormes e barulhentas rebentaram no capô. Depois, o pisca-pisca acenou, um caminhão passou rente, o carro invadiu a pista e acelerou. Digitei um ponto final e fui ao parapeito, sentindo a altura ocupar os espaços de meu corpo. Olhei a vidraça do que me pareceu ser o nono ou décimo andar do prédio em frente e pensei vislumbrar um vulto retornando à sala. Durante alguns minutos vi o movimento da rua aumentar exponencialmente e a maré de cabeças e roupas invadir a paisagem distante. Voltei ao computador, sentei e reli várias vezes as últimas linhas, reconstruindo o sofrimento de Cloé e fiquei olhando o cursor piscar, tão perto me pedindo que terminasse de criar aquela mulher.
Paulo Akira Nakazato, 55 anos, físico. Adora palavras e às vezes organiza algumas em contos e crônicas, esperando que façam sentido. Mas o que o atrai, mesmo, é quando elas orbitam no poema e se arranjam em sistemas estelares próprios.
Paulo,
Adorei
Não dá pra largar um minuto esse texto com tanta
sensualidade impregnada em todos os detalhes, além do
Mistério q essa Cloé vai ditando a vc .
Parabens