Post Clube dos Escritores Leo Forte Mil anos sem perdão

Mil anos…sem perdão,
por Leo Forte

Antes de começar a ler, aperte o play e embale a leitura no som de Charles Mingus tocando Moanin’…

Charles Mingus, Moanin’

Na calçada, as pessoas andavam a passos de multidão. Ele não desgrudava os olhos da nuca do homem loiro, sua mão no bolso com forro rasgado segurava firme o cabo do estilete preso na coxa. Vestia calça larga de agasalho e um moletom preto fechado até o pescoço, um boné da mesma cor enterrado na cabeça, óculos escuros e mochila. Com maxilar largo, sobrancelhas espessas e barba não tratada, tinha a aparência de um motoboy.

Quase correndo, passou e ganhou cerca de cinquenta metros do homem que seguia. Entrou na garagem do prédio, onde funcionava uma empreiteira, e esgueirou-se pela escada de acesso. Subiu até o segundo piso onde fingindo conferir os envelopes e jornal que trazia na mão pegou o elevador, para o oitavo andar, o da diretoria. Foi direto para o banheiro ao lado da escada, nessa hora como previsto vazio. Colocou os papéis em cima da pia, com a mão protegida por uma luva cirúrgica, tirou a arma comprida e afiada, segurou-a ao lado do corpo, esperou.

Quando a porta do banheiro começou a abrir foi em sua direção. O homem loiro como fazia diariamente, entrava, e gentilmente manteve a porta aberta para ele sair, não tinha ninguém no corredor. Quando foi passar, usando o peso do corpo pressionou o homem contra a porta. Rapidamente levantou a lâmina e a enterrou de baixo para cima, dois centímetros abaixo da última costela do lado esquerdo até sua mão encostar na barriga da vítima. Segurando firme o cabo do punhal, fez um brusco movimento da munheca para trás. A resistência que sentiu na ponta da lâmina lhe deu a certeza que cortara o coração ao meio, como tinha aprendido na juventude matando porcos no sítio do pai.

O homem fez uma expressão de surpresa e soltou um grunhido, ele o puxou para dentro e deixou escorregar atrás da porta que fechara, só então o sangue começou a fluir pelo cabo da arma fixa na barriga. Pegou o relógio e a carteira do homem, os papéis da pia, saiu e desceu pela escada ao lado do banheiro. Parou dois pisos abaixo entre um andar e outro. Com tranquila eficiência pegou na mochila um elegante paletó cuidadosamente dobrado e uma pasta de couro. Tirou o moletom e a calça de agasalho, estava com calça social, camisa branca e gravata por baixo. Dobrou rapidamente as roupas e colocou-as junto com a mochila e o boné numa sacola grande de loja de grife. Arrancou os apliques das sobrancelhas, a barba e a prótese da boca que o deixava com o maxilar largo. Juntou-os com a luva cirúrgica e colocou tudo no saco plástico que guardou junto com os objetos do morto, os papéis e jornal, na pasta. Vestiu o paletó, colocou um sério óculos de tartaruga, alisou os cabelos e como um elegante executivo, de cabeça baixa entretido com o celular, desceu até o térreo onde se misturou com as pessoas que saiam do prédio.

Caminhou calmamente até a esquina, pegou o primeiro táxi que passava e pediu que fosse para o aeroporto internacional. Lá chegando seguiu direto para os armários guarda-volumes, de um deles retirou uma pequena mala e foi para o toalete. Entrou em um dos gabinetes e trocou o terno por uma confortável e colorida roupa esporte que tirou da maleta onde colocou sua pasta executiva, o moletom e a calça de agasalho. Jogou no vaso os apliques de sobrancelhas e barba, deu descarga. Quebrou a prótese em pedaços e colocou no bolso junto com a luva, para distribuir nas lixeiras do saguão. Saiu com boné, óculos escuros e máquina fotográfica no pescoço, um perfeito turista. Depois de se livrar da prótese e das luvas, tranquilo, foi para o balcão de embarque da classe executiva da Alitália, onde apresentou seu passaporte italiano para check-in. A recepcionista emitindo o bilhete de embarque confirmou:

–  Giusepe Montechiaro, de Bari, Itália.

– Sì.

-Signore Montechiaro, Collegherà Roma a Bari?

– Non rimarrò qualche giorno a Roma.

Exalando simpatia a atendente acrescentou:

– E ‘stato un buon soggiorno qui in Brasile?

– Sì, solo due settimane. Rapida ma buona.

Pegou seu bilhete agradeceu e foi para o portão de embarque, sorrindo.

Uau!…Que italiano bonitão, pensou a recepcionista, simpático vou classificá-lo de “turista sorridente”, com ele fugiria para a Itália.

Caminhando para o finger de embarque passou por um totem de propaganda que dizia “Faça você mesmo”, Giusepe, ainda sorrindo, resmungou:

É isso mesmo…se você precisa fazer algo importante e bem feito…faça você mesmo.


9 comentários

  1. Leo, welcome back! Estava sentindo falta de seus contos marginais. Este é especialmente sinistro, embalado por Charles Mingus. O cara é um James Bond, preciso e elegante.

  2. me lembra os romances noir que lia muito há tantos anos; curiosidade: qual era o desafeto? mas parece que não importa, o fundo musical dá um tom de indiferente exasperação

  3. Menino, que história boa ! É isso, se for pra fazer, faça bem feito. E esse assombro de música. Que bom que vc voltou!

  4. Conto exemplar e música maravilhosa. Delicioso coquetel que nos oferece. Grato por nos ceder a câmera e nos deixar filmar esse plano sequência admirável. Por alguns minutos me senti o próprio Hitch.
    Abraço e parabéns.

  5. Parabéns Leo,

    achei o conto muito muito bom. Suspense até o fim e como todo bom suspense nao há ‘porque ter o desfecho do porque?
    trabalho bem feito tem que ser feito pela gente mesmo, mesmo se matar é demandado! Boa idéia!

    Já o jazz achei barulhento demais. Sorry!

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