Fé tem de letras duas
Mas sempre são suas
Exigências de submissão
Tem cinco letras a razão
Mas se indefesa na porfia
Não sobrevive um dia
Pois razão requer labuta
A ser sempre amparada
Mas se por ela não se luta
Permanece à fé subjugada
E qual Titanic que naufraga
Perece nunca recuperada
A fé ao incauto ainda intimida
Em prática de longa sobrevida
E desprezando lógica e razão
Mantém incólume sua convicção
Incredulidade quanto a evolução
À qual resiste sem frustração
Apregoando milagres cotidianos
Admite ainda que ressuscitamos
Mas da inquisição já escapamos
A Terra possui bilhões de anos
Não começou com os humanos
E em torno do sol enfim giramos
Alma é fruto de nossa razão
Via essa perversa evolução
Em que só humano crê nela
Poupando seu primata irmão
Impedido de usufruir dela
Por carecer de imaginação
O mundo anda tão mudado
Que até se sente antiquado
Continuar a fazer indagação
Se há macaco com mutação
Qual aquela de antigamente
Que fez o homem inteligente
Naquele tempo há muito ido
Até do poeta todo esquecido
Mais palavras foram faladas
A saudar as almas passadas
Do que por ciência produzidas
A salvar as humanas vidas
Também não há porque crer
Apenas no que se pode ver
Quando em nossos corpos
Mesmo ao findarmos mortos
Vibram átomos bem sabemos
Embora nunca os percebemos
Não há imolado por cristão
Mesmo derramando pranto
Que tenha sido eleito santo
Mas há santos em profusão
Proclamados pelos cristãos
Quando mortos por pagãos
O crédulo submete-se à tradição
A louvar Pai, Filho, Espírito Santo
Este incluído por tardia invenção
Mas ao Pai rende-se toda religião
Quanto ao Filho, partiu ressurreto
Abandonando seu rebanho dileto
Admitiria um dia serem cristãos
Sócrates, Aristóteles, Platão?
Talvez não: cultivavam só a razão
Ou sim: havia deuses no panteão
E para eles haveria santa inquisição
Ou só altares de excelsa exaltação?
Se a fé verdadeira move montanhas
Quiçá convertidos sem artimanhas
Como cristãos novos sobrevivessem
E migrando por oceanos exaltassem
Em distantes terras a nova filosofia
Provendo sábia e generosa poesia
Esqueça-se então da rima
Porque ao poeta bem anima
Inquirir a estupidez humana
E à pura razão não desanima
Embora a consciência inflama
Enquanto o fiel só fé declama
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EDER C. R. QUINTÃO – É graduado em Medicina pela Escola Paulista de Medicina desde 1959, doutor em Endocrinologia, comendador da Ordem do Mérito Científico pela Presidência da República do Brasil, livre-docente de clínica médica, professor, pesquisador, membro da Academia Brasileira de Ciências e avô orgulhoso de três netos. “São o mais importante feito do meu CV”, segundo ele. Escrever não entra no CV, é paixão.