Migalhas de réquiem
para uma santa semana,
por Eder Quintão

Fé tem de letras duas

Mas sempre são suas

Exigências de submissão

Tem cinco letras a razão

Mas se indefesa na porfia

Não sobrevive um dia  

Pois razão requer labuta

A ser sempre amparada

Mas se por ela não se luta     

Permanece à fé subjugada

E qual Titanic que naufraga

Perece nunca recuperada

A fé ao incauto ainda intimida

Em prática de longa sobrevida

E desprezando lógica e razão      

Mantém incólume sua convicção

Incredulidade quanto a evolução

À qual resiste sem frustração

Apregoando milagres cotidianos

Admite ainda que ressuscitamos

Mas da inquisição já escapamos

A Terra possui bilhões de anos

Não começou com os humanos  

E em torno do sol enfim giramos

Alma é fruto de nossa razão

Via essa perversa evolução

Em que só humano crê nela  

Poupando seu primata irmão

Impedido de usufruir dela

Por carecer de imaginação

O mundo anda tão mudado

Que até se sente antiquado

Continuar a fazer indagação                   

Se há macaco com mutação

Qual aquela de antigamente

Que fez o homem inteligente

Naquele tempo há muito ido                 

Até do poeta todo esquecido

Mais palavras foram faladas    

A saudar as almas passadas    

Do que por ciência produzidas    

A salvar as humanas vidas

Também não há porque crer  

Apenas no que se pode ver

Quando em nossos corpos

Mesmo ao findarmos mortos

Vibram átomos bem sabemos

Embora nunca os percebemos

Não há imolado por cristão

Mesmo derramando pranto

Que tenha sido eleito santo

Mas há santos em profusão

Proclamados pelos cristãos

Quando mortos por pagãos

O crédulo submete-se à tradição

A louvar Pai, Filho, Espírito Santo

Este incluído por tardia invenção

Mas ao Pai rende-se toda religião

Quanto ao Filho, partiu ressurreto

Abandonando seu rebanho dileto

Admitiria um dia serem cristãos

Sócrates, Aristóteles, Platão?

Talvez não: cultivavam só a razão  

Ou sim: havia deuses no panteão

E para eles haveria santa inquisição

Ou só altares de excelsa exaltação?

Se a fé verdadeira move montanhas

Quiçá convertidos sem artimanhas

Como cristãos novos sobrevivessem

E migrando por oceanos exaltassem

Em distantes terras a nova filosofia

Provendo sábia e generosa poesia

Esqueça-se então da rima

Porque ao poeta bem anima

Inquirir a estupidez humana

E à pura razão não desanima

Embora a consciência inflama

Enquanto o fiel só fé declama

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EDER C. R. QUINTÃO – É graduado em Medicina pela Escola Paulista de Medicina desde 1959, doutor em Endocrinologia, comendador da Ordem do Mérito Científico pela Presidência da República do Brasil, livre-docente de clínica médica, professor, pesquisador, membro da Academia Brasileira de Ciências e avô orgulhoso de três netos. “São o mais importante feito do meu CV”, segundo ele. Escrever não entra no CV, é paixão.

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