Tenho um amante imaginário, Saul. Não faço ideia da razão do nome bíblico, mas Saul, de fato, bem poderia ser um homem do deserto, com sua pele morena, nariz grande, um tantinho adunco, barba cerrada, já bem grisalha, sempre por fazer, olhos escuros. Um desses homens que lá no fundo são quase azuis. Quando está sério, parece sempre zangado. Mas me apaixono toda vez que ele ri. Seu riso impõe-se. E o timbre da sua voz. Tive certeza de que me apaixonaria quando o imaginei falando. Seria um barítono, se cantasse (e ele não canta, ainda bem, é desafinado, embora tenha ritmo, mas só porque eu adoro dançar!). Com a idade, ficou quase calvo. Gosto do formato da sua cabeça. Não é magro, nem gordo. Mas tem um corpo usado. Seco. Saul é velho. Dizem que vou cuidar dele na velhice, mas somos velhos agora. Os dois. Saul vai cuidar de mim. Se não, também não importa. A velhice é feita de esquecimentos…
Saul é um amante perfeito: nem tão doce, curioso de mim. A voz, na cama, é rouca, e eu apenas ouço, sem entender as palavras. Saul é um grande companheiro e me ‘encontrou’ no meio de dois bilhões de mulheres, por isso me ama profundíssimamente. Ontem conversei bastante com ele para que me dissesse o que é tão perfeito na nossa relação. Ele só ri, como se soubesse…
Está sempre onde eu quero. Mas às vezes eu o quero longe. Onde eu não saiba. Queria poder imaginá-lo de volta para o deserto de onde veio e onde nunca estive. Queria ele estrangeiro de mim. É a única coisa que Saul não pode me dar. E isso me entristece às vezes. Não quero que ele saiba tudo de mim.
Saul também sofre, tem um filho muito doente, mas é um homem pragmático. E ele me diz: você é a mulher da minha vida e eu nunca vou te fazer mal e quando você estiver morrendo vou estar lá e te dar um beijo antes de você ir embora. Eu acredito. Porque quero. Ele e eu temos filhos. Já dissemos mentiras para fazê-los dormirem, ou para ajudá-los a acreditar que o mundo tinha significado e propósito. Mentir é verbo que se dissolve no viver. Nessas horas em que que mentimos um para o outro, é bom estar juntos, muito juntos, tão juntos que, como no poema de Pablo Neruda, você não sabe onde terminam seus contornos e começam os do outro, e por algumas estrofes ao menos, tudo faz total sentido…
Nossa relação, no entanto, vem me preocupando ultimamente. Eu queria fechar os olhos e não precisar sempre senti-lo tão em mim…talvez eu tenha que matar Saul.
O amante imaginário 2
Saul está sofrendo, eu sei. Desde que descobriu que tem algo se alimentando gulosamente de mim. Eu me importo cada vez menos, ele, cada vez mais. Lembro vagamente da angústia do início, das palavras que fugiam. E, depois das palavras, as coisas escapando da sua lógica. E, depois das coisas, as pessoas se ausentando de seus contornos. Vazias, elas e eu. Claro, tenho Saul e ele me embala à noite. Não que eu saiba que é de fato de noite (também perdi a noite, não lembro onde!), mas meus olhos registram a escuridão. E talvez eu tenha medo. O escuro ameaça essa plácida tranquilidade da qual me aproximo. Saul me abraça e diz que está tudo bem, que noite ou dia não importa porque as coisas não chegam mais nem vão embora, estão lá apenas, sem acontecer. Tenho cansaços de entendimento. Não, Saul, sem mim, nada existe. Nem você! Ele não responde, de que adiantaria? Olha para mim e me dá um longo beijo, um beijo de inícios. E eu durmo. No dia seguinte, mal acordo, ele chega. Vamos para o deserto, diz. E talvez eu tenha medo. Não conheço o deserto. Sempre soube que existem cobras no deserto e imensas aranhas da cor da areia, impossíveis de distinguir. Mas agora não sei mais. Então as cobras e as aranhas não existem. E o céu? Antes, Saul me contava do céu do deserto, e de como não podia existir céu mais belo, mais povoado. Era impossível a gente não encontrar com Deus no céu do deserto, você dizia, lembra, Saul? Faz tanto tempo ou são só instantes? Vamos de moto, Saul decide, e me puxa pela mão. Eu vou, só porque sinto o comando de sua mão na minha. E sinto o vento, sinto a pele no vento, sinto no corpo o ronco da motocicleta…o universo inteiro é só esse som. Só essa estrada, só essa linha onde habitamos agora. Saul e eu. Já chegamos, Saul? Já, querida. E ele rasga um cenário na minha frente feito de luzes borradas, e imensidão, e calor! Sinto o calor em mim, sinto o braço de Saul pesando nos meus ombros: o céu apagou, Saul, não sei como! Não faz mal, ele diz, apenas continue dirigindo. Para onde? Tanto faz.
O amante imaginário 3
Ela não estava mais lá. Saul podia sentir sua ausência ocupando espaços cada vez mais profundos de si mesmo. Lentamente perdia a pulsação do mundo. Ele teve medo. Mas como poderia? Teve. Tentou acessar o que ela imaginaria se ainda estivesse lá, do outro lado. Tentou ser o Saul que ela construiria. Você é o meu Saul, ela diria. Ele teve vontade de chorar. Mas como poderia? Teve. Ela passaria a mão sobre sua cabeça, os dedos se perdendo em gestos lentos, que desciam até o início das costas, deslizavam pela curva do pescoço, depois voltavam, num lento e quase insuportável movimento ascendente, arrepiando seus poucos cabelos e subindo até o topo da cabeça. Sua fronte encostaria no vão entre os seios dela. Sentiria o calor do corpo da mulher que o inventava e isso seria como voltar para casa. Ele teve saudades. Mas como poderia? Teve. Faltavam já as palavras. Quis desesperadamente preencher os vazios. Imensos. Buscou de novo o corpo dela. Vem, ela diria. Me abraça prá sempre, Saul? E a cabeça dela ocuparia a medida exata entre o pescoço e a curva do seu ombro. Não haveria mais nada para dizer, mas ficariam assim, abraçados. Prá sempre, Saul, é quando a gente deixa de contar o tempo…Então prá sempre, ele desejou. Mas ela sorriu: um dia, eu quis matar você. Ele puxou-a mais para perto de si. Aos poucos, porém, não havia mais nada dela. Entre o pescoço e a curva do ombro, só o vazio. Ele teve medo de não aguentar a dor. Como poderia? Teve.
O amante imaginário 4
Era madrugada e ela não conseguia dormir.
Inquieta. Deu um suspiro. Levantou-se da cama. Deslizou nas meias até a sala. Ligou
o laptop. Esperou. Seus olhos refletiram o azul da tela. Esperou. As mãos
pousaram no teclado, os dedos começaram a martelar as teclas, devagar no
início, velozes em seguida, como se ouvissem. E ela esperou. De repente, o téctéctec
parou. Ela leu as palavras que recém-nasciam na luz: Tenho um amante
imaginário, Saul. Não faço ideia da razão do nome bíblico, mas Saul, de fato,
bem poderia ser um homem do deserto, com sua pele morena, nariz grande, um
tantinho adunco, barba cerrada, já bem grisalha, sempre por fazer, olhos
escuros. Um desses homens que lá no fundo são quase azuis.
Do outro lado, Saul abriu os olhos.
Não mate Saul!
Ele é para ser amado completamente, embora esteja perto demais. Entendo. Precisamos de um tempinho, mesmo nas grandes paixões.
Você me soprou uma aragem nova na imaginação, que estava muito parada, quase um deserto.
O poder da escrita é mágico: apaixonei-me por Saul. Não cometa um assassinato, tenho certeza de que vai se arrepender.
A menos que…
Também digo, não o mate. E que beleza de texto, ao escrever “Mentir é verbo que se dissolve no viver”, abriu para tantos e tantos verbos que se dissolvem …
Each Man Kills The Thing He Loves
por acaso haverá alguma continuação? mereceria… <3
Todos nós homens gostaríamos de ser um Saul assim amado, querido e desejado. Se for preciso mate-o para não perde-lo.
Na primeira leitura, criei asas e levitei, na segunda voltei à Terra e partilhei Saul com a poeta, agora arquivo essa figura na minha pequena coleção de não-esquecimentos… poucos merecem estar lá…
Linda, linda mulher, você!
Esther, é uma enorme honra fazer parte da sua coleção de não-esquecimentos! Vou lembrar disso, quando, como diz a Sylvia Loeb, me sentir meio seca de palavras….
Leo, amei que vc tenha achado que ele É um homem! Tão difícil para uma mulher descrever um homem que não pareça sempre…DELA!
que lindeza Adília! que carinho nas suas palavras, no seu olhar. Não canso de te admirar!