#memórias
La Primo e o cigarro Galaxy, por Lilian Kogan

Lá pelo final dos anos 70, uma modelo tomou um espaço vultoso nas passarelas e na mídia. Curvilínea, com um corpo escultural, muito diferente dessa estranha beleza da magreza em moda nas últimas décadas. Longos cabelos castanhos, soltos de forma despretensiosa, pele dourada pelo sol, pouca maquiagem, sorriso lindo. Transpirava sensualidade, frescor e saúde.

Rose Di Primo, considerada a musa da tanga, era um furacão.

Lembro de uma propaganda do Iogurte Vigor, que causou o maior furor. A moça toma vagarosamente seu iogurte que num certo momento, escapa da colher, escorre e, estrategicamente, pousa em um dos seus fartos seios. Olhando ingenuamente para a câmera, ela passa o dedo sobre o iogurte e o lambe sensualmente.

O comercial era machista do começo ao fim. Rose, dizia o locutor carioca com voz maliciosa: você poderia abrir a boca para provar que além de linda é também inteligente? Ela concordando começava a tomar o iogurte.

Era o início do meu namoro com meu futuro marido. Eu, uma garota bonitinha, bem magrinha e um pouco tímida de 16 para 17 anos. Ele, um tanto mais velho e muito mais conhecedor das malícias da vida do que eu.

A família dele era proprietária de uma fábrica de tecelagem que vendia para confecções de praia e lingerie. Duas vezes por ano, além de fazer os desfiles na feira têxtil da época, a FENIT, reproduziam o mesmo desfile na própria fábrica.

E naquele ano, quem ganhou todas as passarelas foi ela, a musa da tanga de Ipanema.

Desfilava graciosamente, era simpática e me parecia uma pessoa humilde. As outras manecas – como se falava à época – desapareciam perto dela.

Assim que terminou esse desfile, Rose saiu para conversar com os compradores, fotógrafos e costureiros. Era lançamento de uma lycra metalizada que foi o hit de muitas capas de revistas feitas por ela. Eu lá, boquiaberta, e meu futuro marido mais ainda. Ela sentou- se displicentemente no chão, conversando com todo o mundo. Ganhei o famoso biquíni com que ela desfilara, e mesmo tendo o manequim igual ao da musa, sentia que isso ainda não bastava para eu ter atenção total do futuro pretendente que só tecia elogios à modelo. Naquela época uma mulher mais velha ganhava muitos pontos por sua vivência – pelo menos para mim e minhas amigas era assim. Quem tinha que lutar nesse campo era eu. Sempre fui uma leitora perspicaz dos movimentos corporais, prestei muita atenção quando ela puxou graciosamente o maço de Galaxy dentro do bolso superior do macacão jeans. Imediatamente foi cercada por mãos masculinas prontas para acender seu cigarro. Eu estava hipnotizada, queria ser ela.

No dia seguinte entrei na Levi’s e comprei o mesmo macacão. Comprei também um tamanco plataforma, todo feito em patchwork de verniz colorido de uma loja meio hippie chic chamada Rosa Amarela, com um salto grosso e altíssimo de madeira. Afinal, a musa devia ter uns 6 centímetros a mais do que eu, e meus ouvidos captaram bem os inúmeros elogios à sua exuberante altura. Passei na farmácia para comprar água oxigenada cremosa e ficar com os mesmos pelos dourados nos braços, algo que achei muito sexy na modelo. Deixei meus longos cabelos naturais, para horror de minha mãe que os queria lisos e comportados. E comecei a fumar escondido, mas na frente do futuro pretendente, claro! Reproduzindo todos os gestos por mim escaneados. Vai que ele esquece da beldade… fato quase impossível devido às inúmeras capas de revistas escancaradas em todas as bancas de jornais do Brasil. O assunto de todos os momentos era a musa da passarela. Até no meio político havia um zum-zum de um famoso ministro, casado e bem atrevido, querendo sua atenção.

Duas semanas após o encontro com a musa, recebi um convite para uma festona da comunidade judaica. E como não havia me liberado da recente obsessão em ser clone da Di Primo, não tive dúvidas de que lá selaria meu modo de ser repaginado. E sem pestanejar, coloquei o macacão jeans e os cigarros Galaxy na bolsa, pensei que cairia melhor do que no bolso igual à modelo, em se tratando de uma festa desse porte. Encostada em uma parede externa da mansão, conversando animadamente com um pequeno grupo de amigos, na primeira tragada me deparei com os olhos arregalados de minha mãe. Mãos na cintura me chamou só com uma inclinada de cabeça para o banheiro mais próximo.

Quem eu pensava que era, dizia ela. Eu não ousei responder, mas tinha certeza de que era a Rose Di Primo. Como eu tinha coragem de aparecer naquele tipo de festa com um macacão? E fumando! Você fuma, desde quando? De onde é esse macacão? Da Levi’s, mãe, tá super na moda! Eu não posso imaginar isso, só pode ser para me deixar envergonhada na frente de todos. Uma parte irreverente, que sempre me habitou, e se desenvolveu muito bem nos anos vindouros, gostou um tiquinho de tirar minha mãe do papel poderoso que ela, de fato, exercia na alta sociedade e sobre mim.

Quando cheguei em casa, vi as luzes do quarto dela acesas. Engoli em seco e parada não sabia se iria até lá, um hábito quando eu voltava de algum lugar e queria conversar. Só que não naquela noite, mas a porta abriu-se mais rápido do que eu pudesse me mover.

Lilian, disse minha mãe, com seu longo kaftan de seda azul petróleo que usava quando chegava em casa, vem aqui. E mãe quando não chama pelo apelido, já viu…

Depois que contei em quem havia me inspirado para aquela noite, ouvi: você não precisa usar nada disso, você é linda, para mim muito mais bonita do que essa modelo aí. Dê mais valor pra você, se você não se valorizar, quem vai te valorizar?

Amanhã vamos comprar um vestido e sapatos bonitos, mirando meus tamancos, e iremos à Dona Margarida, a cabelereira da moda, que tinha um casarão nos jardins para receber as clientes, em grande parte formada por artistas. Ela tinha esperança que Dona Margarida pudesse domar meus cabelos rebeldes.

Voltei para o quarto embasbacada, não era do feitio de minha mãe esse tom tão amável e compreensivo.

E isso foi um fator importante para o início da minha mudança de fase. Se as mães soubessem como um elogio verdadeiro muda a nossa percepção e expectativa a respeito de nós mesmas, elogiariam mais.

E assim, Rose Di Primo ficou lá no baú do passado, junto com o macacão, muito embora, vez por outra, eu o vestisse com especial prazer. Talvez, sem perceber, através dele fiz um ato tanto transgressor quanto transformador, naquela noite. Soube anos depois, que Rose havia sofrido uma grave depressão, o que a fez largar o trabalho de atriz e modelo e se dedicar à religião evangélica. Eu, que já havia testado a resiliência materna ao fazer curso de catecismo, não poderia mais seguir seu piedoso caminho. Rose Di Primo ficou para a história.

Para os curiosos https://youtu.be/nVQNR4l6f-I

13 comentários

  1. Lilian, eu não me lembrava da Rose Di Primo (acho que ainda usava calça curta nos tempos áureos da maneca). Mas você teve toda razão de se inspirar nela: que força da natureza hein?! Outra força é este seu texto: tão saboroso quanto parece ser o iogurte vigor.

  2. Final dos anos 70. Olha aí Lilian, obrigado. A fluidez de seu texto me transportou direto para empoeirados porões da memória. Tempos de barba e cabelos compridos, Pasquim e Roses di Primo…É, foi uma boa viagem.

  3. Meus parabéns Lilian. Maravilhoso texto. Poucos das novas gerações sabem que Rose di Primo foi a nossa 1a super top-model internacional ainda nos anos 70 e abriu o caminho para as demais que hoje conhecemos. Como ela nunca haverá outra igual. Muita saudades dela. Pena que ela não deu mais noticias.

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