Lúcia se abaixou contrariada para recolher os cacos no chão. Continuava a mesma desastrada de sempre. “Mão podre! Tonta!” Derrubava tudo, esbarrava nos móveis; vivia com o corpo cheio de equimoses. Agora, arrumava a mesa quando um prato escapou-lhe das mãos. “Acho que estou tremendo um pouco, será nervoso? Mas nervoso de quê? Está tudo bem. Pode ser o mal de Parkinson começando…vai saber. Há tantos males nesta vida. Esse seria apenas mais um.” Suspirou, jogando os cacos na lixeira.
Era domingo. Lúcia acordara mais cedo e fora à missa rezar pela alma do marido. Cinco anos de falecimento. Perdera um pedaço de si. “Eu me sinto aleijada, incompleta, como se me tivessem arrancado um braço, uma perna. Tão jovem, meu Deus! E como era generoso o meu amor”. Lúcia sangrara por 2 anos. Depois, fora se afeiçoando à dor, à solidão, à viuvez convicta. Vivia reclusa no apartamento comprado com o dinheiro do seguro. Os filhos lhe proviam de eletrodomésticos e visitas esparsas.
Escolhera a missa das seis porque teria a manhã livre para preparar o almoço especial. Os filhos, que quase nunca a visitavam no mesmo dia, resolveram agradá-la e viriam vê-la naquele domingo. “Há quanto tempo não almoçamos todos juntos. O pai de vocês vai ficar muito satisfeito”. Os dois irmãos eram diferentes em tudo. Um louro, outro moreno. Um calmo, outro explosivo. Um mais carinhoso, outro mais seco. Lúcia negava e tentava disfarçar, mas o filho mais velho era o seu preferido. Por volta das 11, os pratos estavam prontos: lombo assado para o primogênito e lasanha para o caçula.
Lúcia ajeitava meticulosamente um talher quando ouviu um aviso de mensagem no celular. Era um áudio: “Mãe, infelizmente, não vou poder ir almoçar com a senhora hoje. Eu sei que tínhamos combinado a reunião em família e eu estou louco pra comer a sua lasanha, mas não vai dar. Tinha me esquecido de que o aniversário do diretor é hoje; vai ter um churrasco e eu não posso deixar de ir. Vamos ver na próxima semana. Fica chateada não, dona Lúcia. Amanhã eu te ligo, tá? Um beijo!”
A mesa estava posta. Toalha branca, sousplats de crochê, pratos novos, talheres de inox, guardanapos. No centro, um arranjo de flores. Lúcia pegava o celular para colocar uma playlist que agradaria ao filho quando chegou uma mensagem de um número desconhecido: “Oi, dona Lúcia, tudo bem? A senhora não me conhece ainda. Eu sou amiga do seu filho. Ele me pediu pra lhe avisar que não vai ter jeito de ir na sua casa hoje. Ele está dirigindo agora e disse que mais tarde lhe explica melhor, tá bom? Fica com Deus. Um abraço!”
Lúcia embalou a lasanha e o lombo assado e os guardou no freezer, intactos. Os meninos viriam outro dia e comeriam todos juntos conforme planejado. A vida era assim mesmo: cheia de imprevistos e chateações. O importante era a felicidade deles, não a dela. Selecionou uma playlist de música italiana. Esquentou um resto de estrogonofe, sentou-se na mesma cadeira de sempre e almoçou sozinha. Eros Ramazotti cantava Sono umane situazioni quei momenti fra di noi I distacchi e i ritorni da capirci niente poi… Lúcia comia lentamente, mastigando palavras e pensamentos. Absorta, olhava os gerânios na floreira e viajava por mundos distantes.
Assistia à televisão na sala, quando começou a sentir-se um pouco zonza, a cabeça pesada, as mãos trêmulas, sudorese. “Essa comida não me bateu bem. Engraçado, o gosto estava ótimo”. Lúcia cambaleou até o seu quarto. Sentia-se nauseada, fraca, esquisita. Tomou um comprimido, deitou-se na cama e, após alguns minutos, adormeceu.
Acordou com o barulho da campainha. Tanto tempo que aquela campainha não tocava. Os filhos eram os únicos que a visitavam. Quem seria? Que estranho, por que o porteiro não havia chamado pelo interfone? Quando Lúcia se levantou e foi atender à porta, sentia-se muito bem. “Está vendo, era coisa à toa. Já passou.”
Ao abrir a porta, deparou-se com um olhar enamorado e um sorriso luminoso. Depois, veio um longo, longo abraço, que quase a fez adormecer novamente.
— Amor, tem muito tempo que você está aí? Tadinho. Eu passei um pouco agora à tarde. Tomei um remédio e apaguei. Que horas são?
— Nem sei, amor. Eu cheguei agora há pouco. Você melhorou mesmo?
— Estou ótima, amor. Foi um mal-estar passageiro. Está meio frio. Choveu?
— Nossa! Caiu um aguaceiro pesado.
— Eu não vi nada. Mas essa chuva foi boa pra molhar nossos gerânios.
— Foi mesmo. Eles estão lindos, viçosos. Você também está linda com essa carinha de sono. Te falar: eu quero levar você pra conhecer um lugar incrível que eu descobri esses dias. Acho que você vai gostar. A gente poderia ir lá agora, o que você acha?
— Amor, você sempre com suas surpresas, hein? Eu adoro isso. Vamos sim! Vou só tomar um banho e vestir uma roupa bem rapidinho.
— Beleza. Enquanto você se apronta eu vou tirando a mesa, lavando as vasilhas e organizando a cozinha. Eu sei que você não gosta de sair e deixar a casa bagunçada.
— Você não existe, amor.
— Lucinha, eu existo sim, mas de forma completa, somente quando estou com você. E acho que você também só existe inteira quando está comigo. A verdade é que somos partes um do outro. Vai lá, se arruma com calma e vamos curtir nosso final do domingo.
E agora, dna Lucia? A sra me deixou com a cuca fundida. Muito bom, sua história não é para qualquer um dar qualquer palpite.
Filhos! Ah! filhos…
Sudorese, mãos trêmulas, dor de cabeça, hummmm, adormecimento….tremedeira quando estava arrumando a mesa…
Vai ter que se cuidar melhor.
Ainda bem que seu amor chegou, finalmente veio completar a parte que estava faltando.
Bom domingo!