Blog Clube dos Escritores 50+ Lourdes Gutierres O chamado das ruas

Lourdes Gutierres e O Chamado da Rua

Na porta da sala, o toque na maçaneta gelada, um gesto tão usual e, nesse momento, inusitado. Como principiante, vou em busca do cotidiano fora da morada que me abrigara da fúria do vírus a circundar pela cidade. O brilho do sol ofusca meu olhar, enquanto procuro distinguir nuances lilases da quaresmeira em frente de casa. Pássaros se recolhem em seus ramos e o canto de um bando de maritacas ecoa no espaço.  Avisto telhados desgastados pelo tempo e em alguns portões placas de uma incorporadora – breve lançamento. À minha tentativa de percorrer o agora, se sobrepõe a visão futura com imensos espigões de concreto substituindo as atuais moradias. Lá se vão os vizinhos, não se sabe para onde nem quando, nesse fluxo ininterrupto de capital ávido por lucratividade que decompõe a cidade em turbulência e aridez. O riso das crianças no quintal e as roseiras de dona Amália serão soterrados pelos escombros da demolição?

Resisto à vontade de me recolher novamente, como se precisasse de novo alento para continuar minha jornada; enfim, desço as escadas  em direção à rua. Uma moça de vestido colorido e curto segue na calçada com seu cachorrinho que vai ondulante pelo chão. De repente, ela o coloca no colo, passa a mão em seus pelos castanhos e ajeita o enfeite em sua cabeça.  A carícia transborda em mim na forma de Nero, o amado cachorro da infância, feroz por vezes. Tenho ainda no braço a marca de seus dentes, foi quando tentei retirá-lo de uma briga de cães; toco nela para sentir o roçar de seus pelos em minha saudade, só vez por outra.

A mercearia japonesa está aberta, uma senhora coloca as compras no porta-malas do carro; ao ajeitar pacotes de arroz, deixa cair uma caixa de chá, o mesmo que Hideko costumava oferecer após as refeições. Tentei aprender com ela o preparo de sukiyaki, nunca consegui encontrar aquele ponto que só ela sabia, talvez porque sua presença me envolvia de tal maneira que tornava difícil atentar para as proporções exatas dos ingredientes. Nunca imaginei perdê-la, muito menos da forma como tudo aconteceu, aquele acidente aéreo.

Na casa de portão azul, havia uma moça grávida, como estaria seu bebê? A janela está fechada, pode ser que esteja dormindo, em sua inocência, ainda tão alheio aos transtornos atuais. Que a realidade mais para frente lhe seja promissora, por ora, só vestígios de alegria. Quando criança, minha mãe sempre se incomodava com risadas; se as minhas lhe pareciam exageradas e inoportunas, costumava de forma sorrateira beliscar meu braço ou dar chutes em minha perna por baixo da mesa. Tenho até hoje o costume de colocar a mão nos lábios, ao menor esboço de sorriso.

Mais adiante, ouço notas musicais, alguém ensaia uma sonata de Beethoven, a mesma que Tobias costumava tocar nas festas de aniversário, será que há música no espaço em que habita atualmente? Sei que algum dia vamos nos encontrar,  então imagino que a primeira coisa que vou fazer é pedir para ele que toque piano como nos velhos tempos. Instintivamente, procuro sinais no azul do céu, nuvens em formas de linhas finas e cumpridas anunciam dia ensolarado, como naquela manhã em Saquarema, Tobias com sua prancha de surf…

A freada de um carro desvia meu olhar do céu e me chama para o concreto da calçada. Bem à minha frente, a base do tronco da tipuana ceifada. A resina avermelhada nas bordas mostra que foi abatida recentemente; ao seu lado ainda estão amontadas algumas de suas partes. Parece sangrar em cada pedaço de seu tronco repleto de rachaduras, deixando à mostra seu rastro de dor. O clarão da lua não mais acolherá suas ramagens enfeitadas de amarelo. A sombra que se projeta não é de sua copa, mas do vazio. Sem ter com quem compartilhar minhas indagações a respeito do corte da árvore, sigo adiante um tanto ferida pela perda daquele ser que há tão pouco tempo fazia parte da minha história de vida.

Na banca da esquina, compro jornal. O vendedor que parece mais magro e curvado me estende o troco, sem responder se estava bem, faz apenas um gesto com a cabeça, seu olhar divaga.  Os vincos de sua testa e o ar de preocupação mostram que a situação está difícil para ele, idoso e sozinho, tendo de lidar com o movimento de seu negócio – prefere o silêncio.

Sigo para a cafeteria que costumava frequentar. Mesas espaçadas, apenas uma atendente e um só freguês logo na entrada; peço um café e me dirijo para o outro extremo, ao fundo. Mesmo com a distância, ouço a voz do homem ao celular, faz perguntas altas ao navegador de internet e replica respostas. Parece interessado na segunda guerra mundial.

 – Absurdo! Tânia, sabe quantos morreram em Hiroshima? – pergunta à atendente. Fala um número que não entendi direito e colocando as mãos na cabeça, conclui: – Que barbaridade!

Notando minha estranheza, ao me entregar o café, Tânia explica que antes ele vinha com outras pessoas, trocavam ideias; ficou um tempo em isolamento, agora conversa sozinho com o celular e diz que passa horas assim. Pelo aroma, reconheço a marca do café – vem lá de Minas, ah!, delicioso.  

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