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Lourdes Gutierres, a tela e a Semana de 22

Tarsila? Imperdível. Quando soube da exposição da artista no MASP, tratei logo de me ajeitar para ir. Essas coisas são assim, se você não se organiza, o tempo passa, e, quando vai ver, já acabou. O MASP foi projetado pela arquiteta Lina Bo Bardi. É um assombro. A combinação de vidro e concreto áspero impõe-se pela delicadeza. Como pode a imensa caixa estar suspensa por duas traves? Vermelhas, surpreendentes. Embaixo, o vão. O vasto espaço livre, por onde vagueia a cidade. Através dele, a visão dos edifícios entrelaçados. No horizonte, o céu de nuvens escuras. Mesmo não sendo especialista, dá para compreender a complexidade da obra. Quantos cálculos precisaram ser feitos? Quanto tempo o humano precisou andar pela Terra para conseguir um acúmulo de conhecimento que permitisse obras desse tipo? Imagine, sair da caverna, morada segura encontrada em rochas, e chegar a este estágio. Ainda tem gente que não dá valor ao aprendizado, à transmissão do saber, imagine! Bem que morar em caverna, nos dias atuais, não parece uma má ideia; a situação está cada vez mais difícil. A propósito, descobri há pouco tempo que tinha uma noção equivocada dos chamados homens primitivos, certamente por causa de filmes de qualidade duvidosa. A descoberta se deu ao assistir ao documentário A caverna dos sonhos esquecidos, de Herzog, sobre a caverna de Chauvet, na França. Lá foram encontradas cerca de quatrocentas pin­turas rupestres. Um museu com obras de mais de trinta mil anos. O testemunho da arte da humanidade. Foram pintados leões, panteras, ursos, entre outros animais. Os cavalos parecem estar em movimento, não dá para acre­ditar! Primitivos tais artistas, hein? Quantos enganos na história contada! Ainda tem gente que não acredita na importância da pesquisa. Por que a exposição no MASP me instigou? Desde jovem ouço falar no movimento modernista. Tarsila foi uma das figuras centrais desse movimento. Teve muitos mestres, estudou em Paris, aprendeu estilos modernos de pintura; inovou, produzindo algo singular, na busca de seu sentido de brasilidade. “Sou profundamente bra­sileira e vou estudar o gosto e a arte dos nossos caipiras. Espero, no interior, aprender com os que ainda não foram corrompidos pelas academias”, disse. Seu quadro, Abaporu, de 1928, inaugurou o movimento antropofágico nas artes plásticas. E eu ia perder isso?

Aprender e recriar, a arte que se materializa por toda parte. Na avenida Paulista, onde está o museu, todas as construções atuais substituíram os antigos casarões dos barões do café. Utiliza-se a mais alta tecnologia para inovar. Elementos brutos, extraídos da terra, são combinados para configurar as estruturas e as relações sociais. Minerais, como chumbo, alumínio, silício e ouro, permeiam o interior e o exterior de todo o moderno cenário. Conexões interligam redes de conhecimento, pessoas de diversos lugares, os mais longínquos. Ainda há gente que não acredita na teia do saber.

Algumas obras expostas no museu já eram de meu conhecimento. Estar diante delas tem um impacto indes­critível. Percebi que cada uma me atraía por um motivo específico. Qual? Sentia-me confusa naquele território, conhecido apenas por fotografias. Precisava de uma bússola para percorrer meus sentimentos. Diante da tela A Negra tive de me conter, havia muita gente por perto, não ficaria bem desabar ali. Mas foi quase, por um triz não caí em prantos.

Como testemunha da história, a artista representou o progresso econômico da cidade na tela São Paulo. Figuram ali o bonde, a ponte de ferro, a bomba de gasolina, o poste de luz elétrica, o cartaz com números em um edifício. Ele­mentos do cenário da época. Nenhum trabalhador.

Em outra obra, Operários, estão rostos em forma de pirâmide que parecem nos dizer: olha, estamos aqui, somos nós que geramos esse progresso. Ao fundo, a fábrica com chaminé expelindo fumaça cinza. É possível reconhecer no quadro a diversidade humana, em virtude do fluxo migratório que compôs a classe trabalhadora paulistana. O olhar chama a atenção. O que querem expressar? Cansaço? Desesperança? Todos olhavam fixamente para a frente. Para mim? Estranho um não olhar para o outro. Nenhum contato visual. Não sorriem. Qual sonho? Senti falta de maior proximidade com as condições de trabalho daquele período, decidi pesquisar a respeito. Assim, poderia ter mais bases para interpretar a obra.

Lembrei-me do filme Tempos modernos, de Chaplin, que mostra os danos emocionais da atividade mecânica e repetitiva que um operário era obrigado a executar na fábrica. Modernidade?

Na verdade, era muita coisa para ver num só dia. Pre­cisaria voltar para dar continuidade à minha observa­ção. Cansada, sentei-me na lanchonete do andar. Pedi um café, o aroma já me reanimou. Desci para o vão do prédio. Havia um aglomerado de pessoas. Era uma manifestação. Fixei minha atenção nos rostos, procurava por ali a repre­sentação da pirâmide de Tarsila. Não eram só adultos, havia crianças. O que era aquilo? Fiquei curiosa. Li os manifestos distribuídos, ouvi discursos. Enfim, procurei me inteirar dos fatos. De repente, eu me senti na Grécia Antiga, encontrava-me na Ágora, espaço público onde os cidadãos se reuniam para debater temas importantes para a comunidade. Discutia-se ali o anúncio feito pelo governo federal do corte de verbas orçamentárias para a educação. Naquele espaço de cidadania concentravam-se professores e alunos. Rostos diversos, o que expressavam? Claro, eu ainda estava sob a influência da tela que acabara de ver. O medo, talvez. Medo do futuro. Medo de não poderem realizar seus sonhos: estudar, obter conhecimentos pro­pulsores de uma vida melhor. Medo de não encontrarem trabalho. Medo de, mesmo trabalhando a vida toda, não conseguirem garantir a aposentadoria na velhice. Medo esse que, diferentemente daquele expresso por Drummond, não esterilizava os abraços. Ao contrário, ali havia o entre­laçamento, a união. Que força era aquela que os tornava tão altivos? Pareciam caminhar com esperança, na crença de que unidos poderiam virar o jogo.

Carregavam cartazes, faixas. Ao som de tambores, canta­vam em defesa da educação pública, gratuita e de qualidade.

Inquieta, busquei a expressão daquilo que acontecia naquela Ágora, da qual já me sentia participante. Precisei explorar minha caverna dos sonhos esquecidos. Então, pro­jetei uma tela naquele espaço. Imensa. Branca. Luminosa. No centro, um ponto. Denso. Escuro. Pulsante.

O big bang começou assim.

Essa crônica de Lourdes Gutierres foi originalmente publicada no livro À sombra da cidade, da editora Labrador

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