“O que eu poderia querer deixar para essas meninas?” já aflita, eu me preocupava. “Que diabo, não pode ser tão difícil!” (desde menina, dizer “com os diabos” era minha fala de rebeldia”, isso e assobiar faziam sempre minha mãe me comparar a um estivador do cais do porto e eu ia embora feliz, pensando nos homens do mar…)
“Filhas tão queridas”, comecei…mas são tão diferentes, tão intensas, como se viver se fizesse sempre à flor da pele, e já eu ia escapando da pergunta, incômoda, ri, incômoda, feito quando eu precisava ficar imóvel na sala de costura da minha avó experimentando vestidos de organdi, “pára de se mexer, menina, vó, essa gola pica, mas vais ficar linda com esse vestido, vê, pomos uma carreira a mais de renda aqui e aumentamos o decote assim, pensa em outra coisa, filhinha, falta só um pouquinho”. Nunca aprendi a costurar. Além de segurar alfinetes na boca, naquela sala cheirando a panos, entendi que lindeza exige esforço e que “um pouquinho” cabia em qualquer tempo. “Queria tanto que vocês se soubessem amadas”, tentei de novo…porque em alguns momentos faz falta, não é? Sentir-se incondicionalmente amada…
Não fui a mãe extraordinária, combinação impossível de Nossa Senhora e de Clint Eastwood, que eu imaginei que seria ideal para criar filhas corajosas e livres. Fui, sim, uma mãe possível, a “good enough mother” me consolava a Fanny, terapeuta, um pouco minha mãe, ela também. “Bom o bastante”, para quem cresceu pelos cantos, sonhando com dragões em florestas encantadas, não chega a ser um consolo e ainda hoje penso que se eu um dia encontrar Deus no meu caminho, vou precisar tomar satisfações…
Tentei mais uma vez. “Dizer o quê?” Ser mãe não é um estado, não é um jeito, é uma posição, um lugar na roda…quando me fiz mãe, já não era mais eu, era todas as outras. Estavam lá minha mãe, minha avó e as outras mulheres mais velhas, todas sentadas já em círculo, esperando por mim, da mesma forma que eu vou estar um dia esperando por vocês…
Foram as mãos delas, invisíveis, que guiaram as minhas nas primeiras vezes de todas as coisas: do febrão e dos pesadelos às rabanadas do Natal. Foi também com elas que tive que brigar, noites e noites, para que vocês amanhecessem sãs e salvas, as asas coloridas de aves migratórias iluminadas do sol da manhã: “deixa elas, vó, elas são mulheres, vê como brilham!”
Ser mãe, meninas, é lembrar-se.
E depois de muito, muito tempo, até eu acabei lembrando: “Endireita as costas, menina”, “pára, vó!”
No início, era escuro. E apenas o desejo fazia fremir o rosto da noite. O desejo e o medo. Houve um encontro. E nasceu a vida, fácil, libertina, imunda de sangue. A mulher então pegou a semente recém-nascida com a delicadeza de quem segura uma asa. E fez um ninho úmido na escuridão para abrigá-la. E disse: cumpra-se! E a semente latejou pela primeira vez. A mulher olhou e viu que ela brilhava. Acolheu tudo no seu silêncio e adormeceu.
Ninguém sabe de fato o que aconteceu enquanto a mulher dormia naqueles tempos antes do tempo. Mas dizem que ao acordar, ela espreguiçou e abriu o manto e dele saíram todas as coisas, todos os seres… saíram o ar e as pedras, animais e plantas, homens e anjos, saíram as palavras e os sonhos, esvoaçaram ao seu redor o sol e as estrelas, a tarde fugiu de uma das pregas, a manhã da outra, de um dos bolsos escaparam os primeiros acordes a quebrar o silêncio e do outro, o tempo que marcou a primeira pausa. Uma sacudidela, e os rios escorreram pelas mangas, uma volta, e era o mar que batia contra a saia ampla. A mulher levantou o rosto e o céu se ergueu das dobras do capuz que lhe caía nas costas. E as sombras, as tempestades, os enganos e as ilusões animavam a trama do tecido de uma estranha, nova, realidade. Assombrados instantes fiapentos de eternidades… E já a mulher vai se desfazendo em líquidas transparências, dela resta apenas a paisagem fresca, recém-pintada do universo. Contam que no lugar onde ela dormiu, a terra ajeitou-se num côncavo, que os antigos, quando por ali passavam, costumavam apontar para as crianças: é o “omphalus”, o umbigo do mundo. Mas as mulheres sabem que é na vastidão deste umbigo que nos encontramos para dançar em círculo, é de lá que nós viemos e é para lá que vamos voltar.
Para vocês, meus amores, deixo essa história inventada…e as fadas no fundo do jardim…
Essa história foi publicada originalmente no livro Coisas de Mãe para Filha, coletânea de textos de várias autoras sobre o relacionamento das mães com suas filhas. Selo Outono da editora BrinqueBook
Que coisa mais linda, Adília!
Eu que ao ter meu primeiro filho, perdi minha mãe antes mesmo dela o conhecer, amei isso: “Ser mãe, meninas, é lembrar-se.” Todos os dias eu lembro o que quero guardar dela, mas tb o que não quero repetir. Feliz dia para você que deve ser uma mãe suficientemente boa, porém acredito que muito amorosa. 💐
Bonito demais Adília! “O umbigo do mundo”.. imagem linda.
que lindeza. que lindeza.