Um lago com águas absolutamente claras. Visão relaxante, o espelho d’água reflete e oferece a vegetação vigorosa das margens e a linha montanhosa do horizonte. Um reflexo bravio, se poderia dizer. Daria nome de filme, daria início de história.
Ao mudar o ângulo de visão, no entanto, percebe-se que o fundo está ocupado. Há nele uma espécie de loteamento. Um fundo de lago loteado! Teria a especulação imobiliária chegado a tal ponto?
O mergulho é possível, por que não? Afinal estamos num sonho. Iniciemos a exploração: há toda sorte, toda espécie de seres e objetos nos terrenos submersos. Comunicam-se entre si, gritam, estabelecem posses e limites. Num dos lotes destaca-se a figura de um pavão azul brilhante: manifesta às claras sua ostentação em busca de uma improvável pavoa aquática. Embora não a tenha visto ainda, vêm à mente os primeiros acordes da Catedral Submersa, sinto sua presença compassiva. Debussy a encontrou por aqui. É certo.
Prossegue o baile, a música invade todos os poros e estabelece contato entre os personagens do fundo, figuras de nosso interior. Redes, teias, interligações: esse parece mesmo ser o padrão de sobrevivência das espécies. Cada indivíduo sempre ligado não só a uma, mas a várias redes. O próprio loteamento submarino nos mostra isso.
Parada! É possível estar completamente só? Lilly Brooks-Dalton trouxe essa questão no romance “O Céu da Meia Noite”: um velho cientista fica isolado numa base do Polo Norte enquanto uma catástrofe está destruindo a humanidade. Cria então a visão de uma criança que o acompanha, interrompe sua solidão e o mantem vivo.
Voltemos ao lago. O lago, seu reflexo e sua transparência. Olha-se para a superfície da água e o que se vê? O céu, as montanhas ao sul, o Sol entre nuvens morrendo lentamente a oeste. Leve inclinação para o fundo e lá está o loteamento, a cidade submersa. Percebe-se agora a água, o corpo d’água que resiste à ocupação. Permanece unido, indivisível. Ocupa soberano seu espaço. Belos peixes (seriam carpas?) não podem ver a Água, entretanto talvez sejam os que mais a compreendem, respeitam sua majestade.
A tarde vai caindo. Só nos resta, por um breve momento, fixar a visão no próprio espelho, na lâmina superficial. Pequenas ondulações correm por ela. As ondas minúsculas carregam em si os Hai-Kais ainda não criados. Eles estão lá, fazem parte das ondulações, vivem com o céu, as montanhas, a água, peixes, pedras, pavões e catedrais. E se movem com eles. Dinâmica vida que incorpora e espalha, acende e apaga. Luz e sombra.
Água vidro,
Espelho água,
Translúcida Vida
Sol e Água
Peixes de luz
Nadam silentes.
Um mergulho à poesia que a tudo interliga na fluidez da vida. Parabéns, Carlos.
Tão líquida quanto poética sua prosa, Carlos. Deslizou mansamente na tarde…