Joguinho matinal,
por Sylvia Loeb

“Coluna Infinita”, do artista romeno Constantin Brâncusi.

É um joguinho que me ocupa todas as manhãs assim que me levanto da cama. Há anos.

A ideia é montar uma pilha de pequenos objetos equilibrados, superpostos uns aos outros que de maneira alguma podem desmoronar. São cinco conjuntos de peças, cada qual com seu nome próprio, que serão montadas numa ordem específica conforme as instruções. Para garantir a estabilidade do conjunto, uma peça maior em forma de triângulo, composta de quatro peças menores soldadas entre si é colocada na base. São as VC. 

A primeira a ser colocada sobre esta é um outro conjunto, este de cinco de peças, também fundidas umas às outras. São as VS. A cada camada colocada verifico o equilíbrio a fim de avançar na montagem. O procedimento requer teimosia e foco. Em seguida, empilho mais cinco, as VL. Estas são separadas umas das outras, não fundidas, o que requer ainda mais atenção. Devem ser bem encaixadas, não podem ficar tortas, senão colocam em risco o conjunto. A partir deste ponto é a vez das VT. São doze, umas sobre as outras. O projeto já está na metade. Leva tempo, se tiver pressa, tudo desmantela. Na sequência, mais sete, são as VC, quase no topo da construção. A mais alta, a que coroa o processo é a que sustenta o céu acima de nós. É a C1, que por sua vez se apoia na C2, que lhe serve de eixo de rotação, o suficiente para ampliar o horizonte além da própria sombra.

A cada manhã me dedico a montar esse joguinho. Ontem, assim como nos últimos vinte anos, estava nessa brincadeira e me distraí. Enquanto encaixava uma VL soprou um vento, achei que fosse um anjo, virei depressa para não perder seu voo. Foi quando toda a pilha hesitou, tremeu e veio abaixo. Parei de respirar, o coração estancado. Meu corpo atravessado por um raio apagou a mente. Não vi o escuro que cobriu minha obra de arquitetura desmoronada. Vou levar meses para restaurá-la, sei que não vai ficar perfeita mas afinal, é apenas uma coluna.

3 comentários

  1. Esse texto conversa com aquele outro, antigo [de 2015], “a intrusa”, não?

    Muito bom! Muito bom mesmo…

    O outro texto, aqui no link :

    https://www.fiftiesmais.com.br/intrusa-2/ [para quem não tiver lido]

    Além da imagem de uma coluna vertebral, fui remetido a outra metáfora, a das ideias, a da arquitetura de um pensamento… [que também se equilibra de um jeito precário, eternamente na iminência de desabar!].

    Será que todo bom texto traz em si sempre germes de metalinguagem?

    1. Conversa muito com a Intrusa, sim. Como vê, estamos sempre às voltas com os mesmos assuntos, mesmos textos, mesmas narrativas que se repetem ad infinitum, com pequenas variações num labirinto infindável. Gostei da metáfrase do pensamento sempre na iminência de desabamento!

  2. Texto profundo de nossa realidade; a partir da obra de arte a construção de cada dia, física, psíquica, a metáfora da distração, o escuro que cobre a obra desmoronada. O texto se faz para o leitor juntando pedacinhos, muito bom!

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