A jarra laranja, por Bettina Lenci

Hoje tomei meu copo de água habitual. Há uma jarra de plástico laranja em cima da pia com água filtrada para facilitar o acesso a um copo de água. Como costumo passar por aquele local com pressa, a caminho da porta de saída, sempre atrasada, mas com sede, não tenho tempo de ficar segurando o copo debaixo do filtro esperando ele encher. Verso a água da jarra laranja, engulo aos borbotões que invariavelmente molha a roupa porque a pressa em beber faz com que ela vaze pelas laterais da minha boca. Enxugo com o pano de prato que fica dependurado próximo ao filtro. Mas a jarra laranja foi destinada a ficar em cima da pia, sempre cheia, não só por conta da pressa. Tomei esta medida por outra razão também: nos dias de folga, quando colocava o copo embaixo do filtro de água para enchê-lo, ele invariavelmente transbordava porque eu me distraía olhando pela janela para ver o que acontecia no apartamento em frente.
Assim, a jarra laranja servia para dois propósitos: não olhar pela janela fazendo-a transbordar e porque me irritava esperar o copo de água se encher quando com pressa.

A minha curiosidade, porém, em relação à vida que se passava no apartamento em frente à janela, era muito maior do que a vontade de facilitar a minha vida ao tomar um copo d’ água. Quantas vezes eu não enchia o copo com a água da jarra e ficava olhando pela janela, sorvendo, entre um gole e outro, uma história que eu estava seguindo, como uma novela em quadrinhos. Infelizmente, devido a diferença de altura entre a minha janela e a do prédio vizinho, só me era permitido ver as pernas das pessoas sentadas no sofá. Quando cruzadas eram as pernas das visitas, quando estendidas sobre a mesa ou dobradas em cima do sofá eram pessoas íntimas da casa. Também me era permitido ver dois jarros chineses azuis, sobre duas mesas laterais, ao lado de dois sofás, um frente ao outro que por sua vez encobriam as pernas das duas mesas. Num deles a dona da casa colocava flores. O outro estava sempre vazio. Era sempre o vaso da direita que estava florido. Estranhamente, não havia cortinas nem persianas para resguardar os moradores da minha curiosidade. Ao lado da sala de visitas, tinha um banheiro e é nesta direção que meu olhar indiscreto pousava interessado. Era comum, todas as vezes em que eu ia me servir de água, um senhor, gordo e largo, já velho, estar sentado na bacia, as calças abaixadas lendo jornal ou soltando a fumaça do cigarro pela janela aberta sem cortinas de proteção. Havia um cachorro que fazia companhia, deitado sobre uma toalha, dentro do box do chuveiro. Lembro o dia em ele chegou , pequenino, naquela casa. Chorou muito! Não sabia porque não fechava a porta do banheiro.

Na sala de visitas eu reconhecia este senhor, por conta dos seus sapatos, largos, do tipo Dr. Scholl porque seus pés eram grandes e inchados e, se eu bebesse vários copos de água por dia, à noite eu o reconhecia pela cor da sua calça, a mesma do dia. Acompanhava também – porque de noite, antes de dormir tomo um copo de água – a vida da mulher sem rosto. Também dela eu só reconhecia os chinelos e as mãos porque elas tricotavam na frente da TV. Deduzi ser sua filha por conta do tornozelo afinado. Imaginei-a separada e que veio morar com o pai. Parecia jovem ainda, mas já com idade para ter netos por causa do tricô. O senhor do banheiro também assistia TV junto com ela, sem fumar. O cachorro continuava no box do banheiro. Tenho certeza que ela proibiu que o pai fumasse na sala e sem dúvida alguma o seu pai era doente: estava sempre no banheiro, de calças abaixadas, exalando a fumaça do seu cigarro pela janela.

Hoje, domingo, fui tomar o meu costumeiro segundo copo de água da manhã. Olho pela janela e levo alguns segundos para entender e me refazer da visão. Desolada, vejo a sala vazia e o banheiro com a janela fechada. Será que o pai morreu por falta de ar e a filha mudou de casa?

Uma sensação de solidão civilizatória tomou conta de mim. Algo havia mudado na minha vida, entre o Natal e o Ano Novo pelo simples fato de não ter tomado copos de água da jarra laranja, olhando pela janela do meu apartamento. Eu fora veranear.
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BETTINA LENCI – Uma empresária que se realizou tendo como início profissional a história da arte e a fotografia, mas que, posteriormente, descobriu que lendo e escrevendo é possível criar um mundo com um olhar agudo sobre o cotidiano de todos nós.

 

 

Um comentário

  1. Janela indiscreta. Com teorias e hipóteses e suposições a respeito de histórias e afetos dos outros. Recolhe-se pequenas pistas, monta-se um quadro. Metodologia científica!
    Copo transbordando, metáfora do esquecimento de si! sinal do voyeurismo que torna a cena do vizinho figura, enquanto a sede é fundo (coadjuvante).
    Não será assim sempre o gesto de escrever? Nascido de um transbordamento – e de nossa capacidade de colocar a fisiologia pessoal (provisoriamente) de lado? Ou vice-versa? Sei lá!
    Ótimo texto!

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