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INOCÊNCIA, conto triste de Lourdes Gutierres

“Sob a pele das palavras há cifras e códigos.”

Carlos Drummond de Andrade

Meu pai ficava junto ao abajur do lado de minha cama. Sua ausência tatuava o vazio ao meu redor; garimpava imagens na minha memória para imprimi-las em cada canto. Do lado da janela, punha trilhos do trem de nossa cidade, por onde minha infância deslizara em sua companhia. Junto à porta, a canoa. A espuma da maré arrancava de nós devaneios infindos; sentados na areia da praia, navegávamos até ilhas remotas ah, como escapar dos tubarões? A pipa deixei junto à luminária do teto; era no céu do morro do gado que o colorido dela relampejava naquelas nossas tardes de domingo.

Do tempo que nos deixou, guardei seus traços. O rosto de contornos variados, ora redondo, ora oval. Bigode usava sempre, barba às vezes. A madrinha tinha cabelos avermelhados que iam quase até a cintura; ela me trazia presentes e tinta para colorir os cabelos do pai, ficava ruivo como ela. Louro ele nunca foi. As lentes de seus óculos eram grossas, de tanto ler à luz de lampião, dizia. Fiquei surpreso ao notar pela primeira vez o azul de seus olhos. Admirei. Nunca mais essa cor soltou de mim.

O Natal estava próximo, mais uma vez perguntei à mãe:

Quando o pai chega?

Ele está longe, muito longe, não pode vir agora.

Longe onde?

Do outro lado do oceano, em Angola.

Minha avó tinha outro dizer: ele cuidava de negócios na Argentina. Ao ouvir isso, meu semblante ficou anuviado será mesmo? Para não deixar margem a dúvidas, pegou um mapa da estante e me mostrou onde ele estaria. Notei que naquela cidade, Rosário, passava o mesmo rio que ficava próximo de casa. Naquela noite, fiz um plano: com uma jangada feita de troncos do quintal, navegaria nesse rio e chegaria de surpresa “Oi pai, tanta saudade!”. Sempre compartilhava aventuras com o primo Zito. Falei com ele sobre isso, queria que me ajudasse, sequer me deu ouvidos; suas bolinhas de gude ocupavam toda sua atenção.

Do lado da casa havia um pasto, era lá que ficava o cabrito da nossa ceia de Natal. Como todos os anos, meu tio chegou no trem da noite, tinha por tarefa matar o animalzinho e preparar o prato. Eu era afeiçoado ao bicho desde que nascera; não suportaria ouvir seus lamentos, tampouco comeria de sua carne. Nem bem o dia amanheceu, segui para os lados do morro com minha pipa. No final da tarde voltei para casa. A conversa do tio com minha mãe escapava pela janela da varanda:

Você não pode enganar esse menino a vida toda. Conte a ele de uma vez por todas que o pai está foragido da justiça. É um criminoso!

Vê como fala, ele é inocente. Inocente, ouviu bem?!!!

2 comentários

  1. Oi Lourdes, gostei muito do seu conto, achei de uma carga poética imensa. Porém senti falta de um pouco mais. Termina mesmo com essa frase?
    ” Vê como fala, ele é inocente. Inocente, ouviu bem?!!!”
    Parabéns!

  2. Lordes, especialista em tecer palavras encantatórias debaixo das quais escondem-se mundos cifrados, que exigem serem decodificados, em jogos de esconde -esconde com seu leitores.
    Muito lindo e triste seu conto/poema.

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