Incógnito - paulo akira nakazato - clube dos escritores maiores de 50 - getty images

Incógnito

 

Guilherme torceu ruidosamente a chave na fechadura. Abriu, mas não havia ninguém esperando. Entrou na sala e fechou a porta com estrondo. Mesmo assim não ouviu nenhuma resposta. Foi à cozinha, sentindo na pisada do solado o quanto estava tenso e receoso. Ao entrar na copa viu a mãe sentada na ponta da mesa, entretida em contas que fazia num caderninho, ao lado da máquina de calcular.

mother-in-law and son-in-law

 

 

 

 

 

 

 

– Oi, mãe!
– Oi, filho.
– Negativo?
– O quê?
– Seu saldo.
– Não. Estou conferindo minhas poupanças.
– Pra quê? – puxou a cadeira e sentou.
– Saber se sobra. Você não veio na terça. Aconteceu alguma coisa?
– Não. Eu tive um compromisso urgente. Desculpe se não liguei. Quando voltei já era muito tarde.
– Deixe de ser caxias. Eu não preciso que você me veja sempre.
– Eu gosto de ver… se está tudo bem – olhou a fisionomia da mulher.
– Pode vir nos finais de semana com Gilda e as crianças, é o suficiente.
– Eu ficaria preocupado, mãe. A senhora foi ao cabeleireiro?
– Cortei o cabelo e pus maquiagem.
– Tem festa?
– Precisa ter festa pra ficar arrumada?
– Não. É que faz tempo que a senhora não… Bem, sei lá.

A mulher se levanta, recolhe os apetrechos enquanto ele também se ergue. Ambos vão à sala. Ela, depois de esconder a caderneta entre os livros, senta no sofá. Ele hesita antes de se acomodar ao lado.

– Ontem eu vi uma reportagem de uma idosa que foi com o neto retirar a aposentadoria e foi assaltada na porta do condomínio em que morava. O neto reagiu e levou dois tiros.
– O que você está insinuando?
– A senhora não tem sacado muito dinheiro no banco, tem?
– Apenas pro dia a dia. Não se preocupe. Eu sei me cuidar.
– A aposentada tinha oitenta anos e a senhora…
– Ainda faltam alguns anos.
– Se precisar de dinheiro alto, me chama. Eu retiro aos poucos.
– Pra que eu vou querer dinheiro alto?
– Não sei. Uma emergência.
– Só se for pra te emprestar.
– Tá bom! Não está mais aqui quem falou. É que estou pensando na situação atual.
– Eu ligo antes.
– Bem… amanhã eu vou levar as crianças a um aniversário e só venho depois de amanhã, no domingo.
– Quer que eu prepare algum prato especial?
– Eu conversei com a Gilda e vamos trazer uma carne assada deliciosa que comemos outro dia. Vem junto arroz e batata. Precisa de uma salada. A senhora providencia?
– Eu dou conta.
– Sabe, mãe… Deixa pra lá… Eu vou indo – beijou-a e ia sair, mas reviu na sala da frente a vidraça imensa que escancarava a rua abaixo. Quem vinha de fora, pela escada, via a sala se descortinando aos poucos, à medida que subia. Olhou de novo e descobriu no aparador, encostado ao parapeito, a fotografia do pai.
–De onde a senhora trouxe essa foto?
– Seu pai me deu quando se tornou Capitão. Capitão Mateus Soares!

Ele olhou uma vez mais o porta retrato e saiu devagar.

Entre o último e o penúltimo degrau, virou-se e viu metade do sofá através da vidraça. Relembrou, então, da cena que vira dois dias antes. Sua mãe deitada nas almofadas apoiava as costas num dos lados do sofá. A cabeça tensionada sustentava-se no ar por conta do abraço que envolvia o pescoço de um homem. A camisa aberta deixava o colo e os seios aparecerem. Um dos pés descalço, apoiado firmemente no chão, retesava a perna nua e branca, enquanto a outra – desceu mais um degrau – enganchava as coxas musculosas dele, que se movimentava num vaivém constante e firme, pressionando as nádegas dela no couro do estofado ao arremeter contra seu púbis. Ela gemia, quase perdendo o fôlego, e no êxtase disse “Mateus!”.

Um longo intervalo de silêncio manteve Guilherme segurando o corrimão, agora, como há dois dias. A mãe se desenlaçou do homem que, com esse gesto, se levantou cuidadoso, catou as roupas no chão e se vestiu. Ela então se refez, apoiou-se no encosto do sofá, pôs-se de pé, aprumou-se e abotoou a camisa até embaixo. Foi para a estante, pegou um punhado de dinheiro e entregou a ele. Guilherme desceu, escondeu-se atrás do muro e aguardou. Poucos minutos depois o homem contornava a esquina.

Guilherme subiu novamente a escada, olhou pela vidraça a sala em penumbras. Hesitou. Desceu devagarinho. Virou-se e percebeu que, daquele lugar perto da calçada, via só a difusão no teto de uma arandela acesa dentro da casa.

 

Paulo Akira Nakazato, 55 anos, físico. Adora palavras e às vezes organiza algumas em contos e crônicas, esperando que façam sentido. Mas o que o atrai, mesmo, é quando elas orbitam no poema e se arranjam em sistemas estelares próprios.

2 comentários

  1. Paulo, uma surpresa! Perturbador porque não gostamos de pensar que uma mulher dessa idade possa ter desejo e, mais que isso, dar conta dele muito bem. Coitado do filho!
    Não preciso falar da qualidade da escrita, preciso? Detalhada, vemos os gestos e expressões de todos os protagonistas. O homem alugado, respeitoso, o filho sem saber o que pensar, a mãe, gloriosa! Parece um filme.

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