(Inspirado na sentença do juiz que emitiu parecer de soltura do acusado de estupro por ejacular em uma mulher no ônibus, justificando a decisão por não ter havido “constrangimento, tampouco violência ou grave ameaça”.)
Pedrinho de oito anos pergunta à avó:
– Vó, o que é estupro?
No café da manhã, a avó, passando pasta de doce de leite na torrada e mordiscando um pedaço, quase engasga.
– Bem, é algo como…
A mente agitava-se buscando no repertório: de onde nascem as crianças? (não, não esse); para que serve o pinto do homem e as bolas? (também não); a xoxota é um pinto cortado? (não!!!).
Sofridos segundos. As crianças são impacientes.
– Vó?!!!
– Bem estupro é… quando alguém mais forte obriga outro a fazer algo que não gosta, que não quer, e até machuca o outro!
Pedrinho pareceu satisfeito e, depois de comer a primeira torrada, pergunta novamente:
– Vó, o que é importunar?
A avó, aliviada – essa era fácil – Importunar é incomodar alguém com algo, insistir quando o outro não quer dar atenção e… (ia continuar com exemplos)
– Vó, estuprar é importunar?
Pedrinho já não queria ouvir a resposta, estava ocupado com um joguinho novo que ganhara no final de semana.
E passaram-se os anos, Pedrinho, com 15, está às voltas com a inquietante, instigante e torturante missão de se aproximar da garota dos sonhos. Ela parece despercebe-lo, mas cochicha com as amigas quando está perto dele. No dia do rolê com um grupo em que ela estaria, Pedrinho não contém o nervosismo, e a mesma avó procura acalmá-lo.
– Confie em você e lembre-se: não deixe que uma garota qualquer o maltrate e … (ai, de novo, qual o repertório? Este não serve. Ela tenta de novo: – Hoje as meninas gostam que os rapazes sejam diretos e honestos, que as tratem bem (Será? …) E termina desistindo dos conselhos: – Pedrinho, vá em frente e fique nervoso se quiser, seu avô … (mas Pedrinho não escutava mais)
No rolê, andam de cá para lá e surge o momento em que ambos estão lado a lado examinando uns CDs; o perfume dela é perturbador, os cabelos esvoaçantes, os fios que atravessam o rosto perto da boca perfeita o deixam tonto; precisa de um apoio e, ao se firmar na prateleira, encosta seu ombro no dela e o braço escorrega até sua cintura, aperta-a contra si, num forte abraço de instantes que parecem uma eternidade. Assustado com o atrevimento separa-se bruscamente.
Ela o olha indagadora e Pedrinho fala balbuciante: – Não quis importuná-la.
O riso espontâneo dela não o ofende e, anos depois, ele lembraria da pergunta da infância: – Estuprar é importunar? Não se imagina estuprando, nem saberia classificar a sensação desse domínio pela força bruta que retira o encanto e a vivacidade da sedução e, quanto a importunar, sinceramente, quem é que tinha ferido o português e o bom senso ao encavalar ambos os termos?__________________________________________________________________________________________________
LILIANA LIVIANO WAHBA – Psicanalista junguiana. Profa Dra da PUC-SP. Diretora de Psicologia da Associação Ser em Cena – Teatro de Afásicos. Autora de Camille Claudel: Criação e Loucura.
Boa Lili, machucam o português e o bom senso. A lei é burra e precisa ser interpretada, senão dá no que deu, nesse caso.
A conversa da avó com o neto é perfeita: ela procurando repertório para responder ao neto.
Vivemos isso o tempo todo, não?
Mistérios das seduções!
Pequenos degraus que separam um significado do outro, entre palavras e gestos…
Sexo e violência – e a fronteira entre eles (que tantas vezes se perde!).
[esperma colar!].
Gostei da estória do pedrinho. da avó e do seu ponto defendido no final.
nao saberia o que lhe escrever porque me desencanta o contraditório criado pela falta de
noção do que é o que. Tanto pela nossa Justiça como do nosso povo! ( pouco saber sobre as artimanhas da linguagem nao é privilégio só nosso).
Fico com Pedrinho e o diálogo com a avó, certamente uma das lições mais carinhosas e adequadas que Pedrinho poderia receber: conhecer a profunda diferença entre as duas expressões e atos.
Gosto do que v. escreve.
abraço
B