Clube dos Escritores 50+ José Carlos Peliano Medo do escuro/ Imagem criada por IA

#históriasparacontarparaosnetos
A luz do escuro, conto de José Carlos Peliano

A lâmpada acesa do corredor trazia seus braços até o aconchego da cama de Clarita dando-lhe a proteção diária de todas as noites. Temia o escuro e não dormia de outro jeito, de jeito nenhum, nem lhe oferecendo estórias, de Alice, da Caronchinha, de Saci, da Vaca Vitória, do Peter Pan, nem chocolate quente, televisão sobre a cômoda, um presentinho ou outro, bom de fato, ou sem fato, nada. Nada a demovia do temor de ficar sozinha no escuro da noite em seu quarto, mesmo protegida pelas cobertas ou seus pais, amigos, bichos de pelúcia. Desde que o sonho de uma noite a assustou lá de dentro do escuro, melhor dizendo um pequeno sonho cabeludo quase pesadelo, sua ingenuidade infantil ficou escura, vacilante, arrepiada, trevas e formas de assombros e arrepios. E gritos se o tempo teimava em nela segurar o escuro no escuro amedrontador e ela mais sentisse amedrontada com o que via principalmente com o que não via, mas que se insinuava. Quando
acabava a energia da casa era um deus-nos-acuda, pois velas ou lampiões acesos, muitos, não davam conta. Os pais não mais sabiam o que fazer, nem os psicólogos consultados, mães de santo, espíritas conhecidos, entendidos e as avozinhas da família e da vizinhança que sempre tiveram e têm remédios, chás, rezas, novenas e crendices de toda ordem. O conhecimento era variado e farto, mas o desentendimento era geral, cada um dizia algo diferente baseado no saber ou bíblia própria, coisas mais estranhas, bizarras mesmo, às vezes sem pé nem cabeça, ou só pé ou só cabeça. Coisas sensatas muitas delas, outras nem tanto ou de inexperientes ou de “deixa que eu chuto”. E Clarita escurecia toda vez que a hora de ir para cama começava a aparecer tirando o sol do horizonte, temia devagar e aos poucos a chegada do chamado para ir deitar-se, o temor já rondava seus temores pequenos ou grandes, bem perto, vivendo e se nutrindo do escuro, tanto maiores quanto
mais variações de perturbações surgiam. Mas dizem que o que fere pode até curar, sara e cura, saracura, que por sinal era o bicho que ela mais gostava, estando afixado em pôster na parede do quarto de dormir.

Chamava-o de Sarinha ou Curinha dependendo do momento, da sensação, do sentimento, da ternura ou dos temores. Quando o medo era tamanho, sem tamanho, ela pedia socorro à saracura, que podia ainda não sarar, nem curar, mas remediava, enganava, embalava, pelo menos ficava perto dela como sentinela, frágil, fotografada, emparedada, afixada na parede lateral do quarto com restos de chicletes, os quais ela sempre renovava para não despencar e comprometer o papel do pôster já bem gasto pelo uso, pela proteção e pelo
tempo. Clarita já sabia que os pais apenas ajudavam a tirá-la para fora do escuro do medo toda noite ou mesmo durante o dia quando ela assentia em conversar sobre o assunto, mas não tiravam o escuro aninhado dentro dela, lá bem escondido onde os sonhos devem começar e talvez terminar, lá bem no fundo se é que lá dentro tem fundo, onde ninguém sabe ainda onde é, suspeitam somente ao criarem hipóteses e teorias. Mas sabia sim onde era o sonho da noite do Dia das Bruxas, comemorado aqui e ali, em certas casas com as
abóboras escancaradas, dependuradas, arrumadas sobre as mesas, as varandas, amarradas nas cercas, deixadas de comer para servirem de caras de bruxas, espantalhos, temores ou algo parecido.

E foi numa dessas noites que Clarita soube de vez de onde vinha seu medo do escuro, soube bem sabido para nunca mais esquecer e temer. Assim do mesmo jeito que chegou e foi embora! Dessas situações comuns na vida e que ninguém acredita, achando que são coisas de cinema, arrumações, fantasias, enganações, trapaças.

Como o imponderável da coceira no nariz, tremura na pálpebra, espinha na bochecha, inchaço nos olhos pela manhã, a dorzinha manhosa na cabeça. Ah! Crianças, o espetáculo da natureza, onde a saúde tem mais tempo para ter cuidado e desfazer logo os contratempos. E os tempos que sempre foram contra Clarita, os noturnos, passaram a ser a seu favor desde essa noite, das abóboras, quando vieram a ela de mãos dadas.

No sonho da noite das bruxas, quando ela se desmontou de sono sobre a cama, cansada de tanto não querer dormir, o tempo veio dar-lhe as mãos na temida forma do escuro, que passou a ser escuro amigo, sem susto, sem receio, sem imagens pré-concebidas, até mesmo com cheiros, de lavanda, jasmim ou marcela, a escolher. Levou-a até o centro do escuro, onde é mais escuro ainda, e de lá lhe disse para apenas ficar quietinha, ainda
segurando suas mãos virtuais, abrir devagarinho os olhos e procurar ver. Ver o quê, ela pensou, em sonho? (Descobriu que podia até pensar em sonho e sentir as mesmas emoções de cada dia). E o tempo respondeu-lhe: dê tempo ao seu tempo, acostume-se, solte os ombros e os músculos, mantenha-se de olhos abertos, baixe a frequência, observe, que eu lhe garanto todo o tempo do mundo porque eu sou ele! E ela, mesmo temerosa, ainda assentiu com o pensamento e deixou-se a olhar o escuro, meio ainda que assustada
com um olho a frente e o outro atrás. Olhava e olhava, olhava e não olhava, para lá, para cá, para ali, para mais adiante, para onde? Se no escuro tudo é igual? Então? Então, então, então…. Aos poucos seus olhos deram sinal de alguma coisa diferente defronte dela do escuro habitual, conhecido, começaram eles a distinguir contornos, linhas, curvas, profundidade, altura, coisas, aprenderam subitamente então a ver o escuro, com olhos da visão e da cor do escuro, práticos, insuspeitos, diferentes, de fato pouco usados por ela mesma em toda a sua visão diferenciada, estranha, transformadora.

Algo se insinuava por ali, outro sinal ao lado, uma forma desinformada ao redor e assim foi. Ela teve ainda um
leve sinal do medo que foi, no entanto, logo abanado pelo tempo, apertando-lhe a mão, mostrando presença e lhe dizendo para deixar o tremor escorrer pelo corpo afora. Tentou uma, duas, três vezes e, ufa, conseguiu, o medo foi se esvaindo feito balão de aniversário que vai murchando até parecer um maracujá seco. Seus olhos começaram a ver coisas de fato e finalmente conseguiram enxergar no escuro e o viu povoado de coisas, as mais diversas, as mais estranhas, diferentes, até mesmo algumas encantadoras, de contornos próprios, de cores inusitadas, uau, com brilhos especiais. Brilhantes? Como brilhantes, pensou, se era escuro? Mas, eram brilhantes sim, ela conseguia ver, até mais que nas manhãs ou nas tardes claras, porque o que é claro no escuro brilha, enquanto o que é claro na claridade se perde, se ofusca, ameniza, e arrefece a nobreza, a predominância, o fulgor.

E ficou rindo sozinha, ou melhor, com o tempo, ainda de mãos dadas a ele. E dançou de alegria e cantou de satisfação e puxou o tempo pela mão e correu os caminhos sonhados e sonháveis e se divertiu como nunca antes e sorria encantada, encantadoramente encantada. Sentiu que o medo vinha de sua vontade de ficar de olhos abertos, que de tanto abertos que ficavam, se tornavam desatentos, desfocados, se igualavam a tudo ao redor. Ela queria ver tudo e não via muita coisa porque perdia os detalhes, os entremeios, os outros sinais. Ela olhava e não conseguia ver bem de olhos abertos. Já no escuro era apenas uma questão de sincronia, era preciso ter mais atenção, deixar os olhos soltos para verem o que o escuro mostrava e não o que os olhos queriam ver, como acontecia de olhos abertos, todo o dia, dia após dia. Percebia que o escuro era mais claro que a claridade, o que era preto passou a ser mais branco que o branco. As cores e as coisas tinham ligações entre si que os olhos diários não viam nem supunham tampouco imaginavam. Clarita, radiosa como a noite escura, como a mais escura das noites escuras, aproveitou todo seu tempo de sonho com o tempo de seu sonho.

Súbito acorda ainda no meio da noite, abre os olhos e vê que não está mais no escuro do sonho, mas na meia luz de seu quarto. Levantou-se, deu uma piscadela para a saracura, foi até o corredor e apagou a luz. Viu-se feliz e satisfeita no escuro do quarto e voltou a se deitar, descontraída, protegida por ela mesma e pela saracura e pelo tempo que sentia em cada respiração, quem sabe vendo agora mais coisas no escuro do que imagina a vã filosofia!

Lamentou-se apenas de não ter tido tempo de abraçar o tempo e beijá-lo para agradecer a inusitada experiência salvadora, mas ao mesmo tempo pensou que ele estava ali com ela e poderiam se encontrar novamente em sonho, bastava agora ela querer, afinal ela não aprendeu a acordar em sonho e passar a noite nele como ela faz todos os dias de manhã para passar os dias? Era só uma questão agora de chamá-lo ao sonho antes de dormir e procurar no sonho por ele quando adormecida. Ele a levaria em paz e segurança para os lugares mais recônditos de sua mente e fantasia do sono sempre que fosse convidado a vir com ela. Percebeu a partir de então que claro e escuro passou a ser somente uma maneira de olhar e ver as coisas de fora ou de dentro da cabeça, dois lados da mesma realidade, a qual pode ser pior para o claro ou para o escuro a depender das aflições cultivadas por cada um. Essas é que são ao final da estória as vilãs dos receios, medos e descontroles os mais diversos que assolam as mentes dos que dependem do claro e do escuro para viverem. A diferença entre o claro e o escuro para ela passou a ser o tempo de olhar e ver, nada mais.

2 comentários

  1. Oi Peliano, parabéns pelo seu texto. Gostei mto. Acho que vc fez um belo e poético trabalho com a linguagem, o que deu um sabor especial á história. Mto bom! Avós e avôs tb vão se deliciar contando para netas e netos. Talvez tenham que explicar uma ou outra palavra mais antiga que eles nunca ouviram falar. Mas isso não chega a ser um problema. Bjs

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