Por que não somos hexacampeões? Explicado para principiantes,
por Eder Quintão

Quem responde claramente essa pergunta tão crucial confessa ser cronista de futebol pela primeira vez, mas nem por isso desqualificado, pois praticante do esporte e seu observador há mais tempo do que, talvez, a totalidade dos cronistas atuais e, embora muitíssimo – humildemente – menos competente no esporte e também na crônica do que o famoso Dr Tostão – ex-exímio futebolista, hoje cronista inteligente e também médico como o autor desta –  não perde para nosso ex-campeão como observador. Não sendo técnico, como os outros duzentos milhões de brasileiros, claramente esclareço o que esses milhões jamais entenderam e insistem em perguntar produzindo as mais variadas explicações possíveis sempre à procura de culpados, geralmente, os técnicos…

Minha experiência futebolística é de muito longa data e dá respaldo a meu currículo nessa área. Era o típico garoto que levava ao campo a bola única, que era dele, apenas por isso aceito no grupo de jogadores dos campinhos da várzea de Vila Monumento. Enfim, um perna-de-pau de sempre, como até hoje, após ter vivido dezessete copas e praticante do esporte entre amigos que, por mera compaixão, continuam a tolerá-lo no campo. Mas com tal experiência darei a resposta, desconhecida para quem só assistiu meia dúzia delas.

No curso de minha vida, amante do esporte, vi mudanças extraordinárias. Na infância jogava com bola de “capotão”. Era uma esfera de gomos de couro unidos por costura à mão pelo trabalho indigente dos reclusos nas penitenciárias. Tinha uma abertura de alguns centímetros pela qual enfiávamos um balão de borracha vazio mas contendo um tubinho usado para enchê-lo de ar. Posto o balão dentro do “capotão”, e insuflado com a bomba usada para encher pneus das bicicletas, amarrava-se com barbante a tal tripa de borracha sepultando-a dentro do mesmo invólucro. O rasgo neste era então fechado com rápida costura à mão com um fio de couro recebendo um pequeno nó terminal. Essa bola do passado tinha dois defeitos: 1) em pouco tempo não era mais uma esfera perfeita; 2) intimidava, pois ao cabeceá-la sempre se temia que a tal costura deixasse sua marca dolorida. Mas seu maior inconveniente era a chuva: bola molhada encharcava o couro aumentando o peso, fazendo mais evidente a marca da costura na testa, além de massacrar  as unhas dos imberbes pés descalços. Terminada a segunda guerra mundial inventaram a bola com o balão incorporado nela e apenas um buraquinho quase imperceptível para ser inflada com uma agulha sem ponta fina. Finalmente, abandonaram o couro; hoje tudo é de plástico, o peso bem calculado e imune a chuvas. Mas bola que se preza continua, como sempre, aprontando das suas como veremos. Lembro que a bola – como objeto visível muito mais móvel entre os quatro lados do campo – nunca é responsável pelos atos e desatinos que perpetra e até recebe aplausos quando atinge seus objetivos. Não há vaias contra bolas.

Nossa pergunta só será entendida pelo leitor sabendo ele as consequências das tais regras ou leis do futebol; elas são poucas e simples, à exceção de uma. Além delas há dois princípios imutáveis de magna importância que norteiam seguramente os resultados das partidas, além dos juízes, é claro. Expliquemos cada coisa em seu lugar e a seu tempo. Falemos primeiro das regras para entender quanto elas implicam no resultado final. Dentre as simples existem as infindáveis formas de faltas (traduzido do inglês “fouls”) sujeitas às mais liberais interpretações pelos juízes de dentro do campo e milhões de outros fora dele (prevalece a daquele que está no campo, em geral infelizmente para os perdedores). Quando a bola sai fora das duas linhas laterais, que tem uns cem metros ou pouco mais, ela é remetida para dentro pelas mãos; quando sai pelas linhas do fundo, de uns 75 metros, é remetida para dentro com os pés, chamada de tiro de canto ou escanteio (do inglês, “corner kick”). Sábios ingleses que no século 19 inventaram essa regra do tiro vindo do canto da linha de fundo. Provavelmente queriam com alguma sutileza penalizar o time que jogou a pelota para traz, como se dissessem “vocês se livraram do perigo de o gol ser atingido, então a bola retornará ao campo com mais potência e risco de gol do que lançada com as mãos, atirada por um chute (do inglês “shoot”)”.  Falta dentro da área chama-se pênalti, incorporada à língua como tradução de “penalty” visto que penalidade tem o inconveniente de ser palavra mais longa absorvida pelo rebuscado linguajar jurídico. A determinação do pênalti pode até depender do humor do juiz, jamais de sua desonestidade, já que a tal linha que delimita a grande área nunca se move: está riscada de cor branca no chão. Sabe-se com certeza que existiu pênalti pelos urros da multidão: se em aprovação são a da parte que torce pelo time que vai batê-lo; se de exaltada reprovação advém dos aficionados do time que vai sofrê-lo. Pênalti é o que mais contundentemente põe à prova a moral dos jogadores e excita a plateia. Como é possível ser explicado o chute para fora se não pelo estado de espírito do chutador? Ora, defendido pelo goleiro pode ser obra do acaso (muitas vezes é), mas desperdiçado por atirador habilitado e empenhado em sucesso requer a intervenção do Dr Freud. Ele diria: moço, atire mal, mas faça-o pelo menos para dentro dos três paus. Põe à prova também a hombridade do juiz (em inglês “referee”, como sendo aquele que refere ou aplica a norma) e, em geral, de sua inocente progenitora, que por precaução e pudor nunca se soube estar presente nos estádios para admirar o trabalho de seu dileto. Conclui-se que mãe de juiz de futebol difere por completo de quaisquer mães. Nem mesmo mães judias de “referees” vão a estádios; até essas insistem em assistir ao show do filho em casa, o que é realmente inusitado para tais mães, mas sinaliza mais uma vez a notória prudência judaica. Se a falta foi fora da grande área, mesmo que por milímetros, não é pênalti apesar de o jogador injuriado despencar ao solo muitos metros para dentro da área. É curioso observar que alguns jogadores, capazes de saltos acrobáticos espetaculares que fazem inveja aos bailarinos profissionais, se esparramm ao chão teatralmente, como pobres vítimas, apenas para mostrar enfaticamente ao juiz que efetivamente o pênalti existiu (às vezes tais artes são frutíferas; por isso continuam sendo cinicamente praticadas). Pelo menos isso tira a seriedade do jogo e promove um espetáculo circense divertido. De passagem lembro que além de ser obrigado a um ótimo fôlego, juízes têm que possuir visão mais aprimorada do que a exigida para obtenção de carteira de motorista e não devem usar lente de contato pois que se perdida no campo, perdida para sempre: nunca soube que partida fosse interrompida em busca de lente de juiz. Também de passagem, informo que juiz é considerado peso morto na partida a despeito de ser capaz de modificar o resultado a seu prazer: se a bola bater no juiz e consequentemente parar nos pés de qualquer jogador, mesmo que adversário, o juiz não precisa se desculpar ou se inquietar; é como se ele fosse mesmo um pedaço de pau inerte imiscuído entre os 22 participantes. Se ocorrer o gol após colidir com o ele, não é gol dele, mas de quem a chutou. Talvez tais episódios sejam os raros momentos hilários do esporte como se depreende das manifestações da multidão: já houve juiz nocauteado por uma bolada na cabeça ou em suas partes bem mais nobres do que o encéfalo. Outra regra simples é a conferida pela pequena área próxima ao gol: ali reina o goleiro (tradução do britânico “goal keeper”): dentro daquele espaço o goleiro é intocável, sendo regiamente protegida sua integridade física. Uma regra de anos mais recentes foi providencialmente introduzida no esporte bretão: se a bola é recuada com os pés ao goleiro do mesmo time, este só pode se desfazer dela com seus próprios pés: se tocar com as mãos ou se ela tocar seus braços, daquele local emanará um chute ao gol perpetrado pelo adversário, mas seu time pode fazer aquela barreira de jogadores a uma distância da bola de onze passos (medidos pelo juiz é claro). Se com essa medida de distância o campo acaba, os defensores se acumularão na linha de fundo frente ao gol o que demandará um chute perfeito sobre as cabeças dos defensores; portanto, não chega a ser a severa punição de um pênalti. Nunca vi tal regra submetida ao apito de juiz, e asseguro, ela foi muito eficaz ao impedir que o time em vantagem no placar gastasse o tempo trocando passes entre seus jogadores e o goleiro; ela evitou o tédio no campo de futebol, aquele tédio típico do beisebol que só é salvo pela quantidade de cerveja consumida com gordos cachorros-quentes.

Há ainda o que aprimorar nas regras. Por exemplo, os passos do juiz para estabelecer o local para a barreira dos jogadores são obviamente uma medida muito imperfeita e invariavelmente repudiada por quem vai chutar a bola (percebe-se isso nos gestos de desagrado do chutador). Dispõe-se hoje, por exemplo, de raios laser que poderiam marcar com total acurácia a distância entre chutador e a barreira. Em compensação acabam de inventar o juiz de fora (de fora do campo) que permite ao de dentro rever a cena televisiva recente da jogada e corrigir erros e dúvidas pois que errare humanum est na justiça da bola quanto na dos tribunais, embora haja dúvida sobre quem erra mais. Vieram agora trazer mais emoção ao jogo aqueles instantes de tensa inquietação à espera do retorno do juiz ao campo (foi ou não foi pênalti? Foi ou não falta grave que mereceu cartão amarelo ou expulsão?). O futebol se transformou em exemplo jurídico ímpar e invejável: julgamento imediato, inapelável, sem reclamos de advogados e promotores, resolução de primeira causa, descartada segunda instância; é a justiça do esporte prevalecendo sobre a justiça dúbia dos tribunais. Mesmo assim, continua precária a despeito de testemunhada in loco por milhares de espectadores, e pela televisão, por milhões. São dois “bandeirinhas” (portam um bandeira que agitam sempre nervosamente para serem vistos pelo juiz) que entre outras atribuições, chamam a atenção do referee para algo que ocorra às suas costas, têm por maior finalidade apontar se a bola saiu do campo e o impedimento, sendo esta a regra mais conturbada do jogo devido à baixa acurácia: se um jogador atacante estiver atrás da linha, infelizmente, virtual dos jogadores defensores, não pode chutar ao gol e se o fizer o gol será imediatamente anulado. Qual a distância perceptível deste “atrás da linha”? Metros, decímetros, centímetros ou milímetros? Qual a capacidade humana para detectar essa medida com precisão? Aprendeu-se numa investigação científica publicada há alguns anos que as mulheres têm melhor visão espacial do que os homens e por isso são melhores “bandeirinhas” para apontar o impedimento (ou talvez por serem simplesmente mais honestas). Esse atributo feminino não confere cem por cento de certeza ao julgamento delas. Marcação de impedimento continua sendo o calcanhar de Aquiles do esporte e motiva a maior parte das explícitas queixas das multidões e dos jogadores, porém, o impedimento está na essência do jogo: se ele não existisse a arte do esporte ficaria confinada a um punhado de jogadores que, como parasitas, se aglomerariam na área contrária e a bola seria atirada de área para área sem necessidade de jogadores distribuídos pelo campo todo. Sem o impedimento o campo poderia se limitar a uns trinta metros de comprimento, o que ocorre no futebol de salão, e traduzido o jogo com fortes chutes levando a bola de uma área à outra tão próxima.

Muito bom senhor cronista: entendidas as regras qual sua resposta à pergunta, reclamam os leitores. Respondo: vamos lá, V. entenderá logo. O gol – aquele espaço entre três paus –  tem pouco mais de sete metros de largura e de dois de altura. Mas, o que define a finalização do ato é a passagem completa da bola pela linha de fundo do campo entre os três paus. Estando no campo é difícil ser apreciado isso ao se enxergar a linha riscada no chão; mais fácil ser o gol notado pelo “bandeirinha” por estar ele próximo à linha de fundo. Pode ser também muito difícil para o público perceber. A passagem da bola é instantânea sem ser percebida consequente ao simples piscar das pálpebras (juízes também piscam como nós). Se a bola cruza rente ao chão é mais bem notada porque passa a linha bem visível, mas se ela bate na trave superior (travessão) ou nas laterais, e em seguida toca o chão, ou então, se ao defender o goleiro o faz segurando-a no ar, mas deixando-a passar a tal linha que não está desenhada no espaço, mas no solo, isso é de difícil observação. O sucesso do gol é óbvio quando a bola toca a rede presa às traves, o que ocorre na maioria dos casos para júbilos e tristezas simultâneas no mesmo local. Por tais razões é prudente a nova técnica: não há mais qualquer dúvida sobre a consumação do gol com um chip dentro da bola e sistema de detecção eletrônica nas traves ou por câmeras nos cantos do campo. As redes só se manterão para emocionar o público: no “football” norte-americano, aliás jogado com as mãos e não com os pés, nem existe rede nas traves. Nem as redes se justificam meramente para que bolas não se percam: elas saem muito mais vezes pelas laterais do campo do que perpassam o gol.

Mas a resposta está aqui: no gol. Como diria Sherlock Holmes: “elementar meu caro Watson, elementar”. No vão enorme daquele espaço entre os três paus, o goleiro se sente com toda razão um anão insignificante, embora para o batedor do pênalti o goleiro entope todo o espaço entre os paus. Mesmo que seja um gigante com quase dois metros de altura e enorme envergadura, para o goleiro o espaço do gol é um imenso vazio: a bola pode passar à revelia dele pelos quatro quadrantes que o envolvem, principalmente os dois superiores. Essa é a diferença fundamental entre o futebol e, principalmente, o basquetebol: aqui só há uma rede envolvendo um arco pouco maior que o diâmetro da bola; se esta for atirada com boa pontaria o ponto é garantido; só vento poderá desviá-la do alvo e a tabela acima da cesta é um auxiliar importante. Não há qualquer outra alternativa. Ao contrário, no futebol um chute perfeito, executado com exímia pontaria, pode não resultar em gol: depende da posição do goleiro (invariavelmente da sorte dele em estar naquele ponto próximo do roteiro da bola) e dos caprichos da balística que talvez só a bola entenda, ou surja de mãos conspurcando o ato, como aquele famoso gol do argentino Maradona contra a Inglaterra. E assim os gols podem decorrer ao acasos e não pelas habilidades de chutadores e defensores. De fato, o imprevisto é a regra; se não o fosse só haveria ganhadores na loteria do futebol. No jogo contra a Bélgica em um escanteio a bola bate nas costas do defensor brasileiro e tem o caminho das redes. Os brasileiros chutam com notável precisão, uma bate na trave, outras quatro ou cinco são desviadas para fora milagrosamente pelo goleiro. Nosso goleiro é um mero espectador do jogo: foi pouquíssimo acionado. O goleiro da Bélgica foi castigado, mas o Brasil perde o jogo. Há quatro anos tomamos o famoso sete a um. Estatisticamente isso não mais ocorrerá: mesmo bem treinada, a Alemanha não conseguiria esse escore tão elevado contra qualquer time da primeira divisão do futebol brasileiro. A favorita Alemanha saiu agora massacrada desta última copa: perde da Coreia, aprendiz nessa arte, um ponto fora da curva na previsão estatística, tal qual os sete a um sobre nós. Em 1950 o Brasil precisava de um empate com o aparentemente insignificante futebol, mas moralmente motivado Uruguai, mas perdeu de dois a um num gol acidental, embora tenha ganho da Espanha por seis a um (com quem o Uruguai empatou), e da Suécia também pelo traumatizante sete a um. Naquele tempo, século 20, os sul-americanos eram os reis da pelota, os europeus aprendizes. Na copa da Espanha um craque brasileiro passou a bola exatamente aonde estava passando um italiano chamado Claudio Rossi, não de propósito, mas porque o italiano estava correndo e encontrou a bola inadvertidamente; foi assim que perdemos a copa. E quando um time se tranca na defensiva vemos o que ocorreu com Bélgica vs. Japão nesta copa de 2018 que poderia até ter levado o confronto para prorrogação. Orientais também aprenderam a arte do jogo e a China está no caminho desse aprendizado: logo haverá lá mais jogadores do que no resto do planeta e maior possibilidade de ser bem-sucedida em mundiais do que o resto do mundo. Nunca soube que croatas e belgas fossem consagrados futebolistas, nem jamais entendi como a despovoada e gelada Islândia, com seu futebol amador e neve eterna, conseguisse disputar uma copa como o Brasil com seu clima quente, campos gramados em todos cantos e milhares de profissionais no esporte. Não se pode compreender como as consagradas Itália e Holanda ficaram fora da competição: coisas do destino. Em 1950 a Inglaterra, rainha do esporte, perdeu de um a zero para os Estados Unidos, que à época não sabiam o que era futebol (e não sabem até hoje chamando-o de “soccer”).  Porém, há uns vinte anos o esporte se universalizou e em tal extensão que é jogado em Malta, na Islândia, na Tailândia, nas Ihas Fiji, na nova Zelândia. O que se faz e se joga hoje em Portugal pouco difere da França, ou na Grécia comparada às também – ambas fora da copa – Itália e Hungria, essa eletrizante em 1954, tal como o inventivo carrossel holandês anos depois, igualmente perdedor. Ambas limitadas a serem apenas vice. Em uma mesma competição se o time A ganha do B e este do C não quer dizer absolutamente que C seja pior do que A, e pode bater esse último na próxima contenda pois o perdedor costuma enfrentar o ganhador contumaz com muito mais galhardia (moral) do que esse. E essa moral é facilmente detectada no esporte: um time ganha com muito mais frequência quando a disputa é em seu estádio do que no estádio do adversário.

O jogador deixou de ser eficiente pela habilidade do ato de driblar (do “drible” inglês) para ser um atleta veloz com potência no chute e fôlego de maratonista.  Corre próximo de uns doze quilômetros por jogo, mas não é corrida cômoda pois o faz conduzindo uma bola e ainda perseguido por adversários que podem dar trancos com o corpo (alguns legais, a maioria puníveis). Nos tempos de Pelé, Garrincha e Gerson, eles e até a bola, se deslocavam em câmera lenta comparados aos atuais. Um jogador com a bola nos pés não mais dispõe de tempo para pensar o que fazer com ela pois é imediatamente cercado por velozes ladrões. Antigamente não fazia diferença se um jogador tinha altura de 1m65 ou 1m90; predominava a habilidade no drible. Hoje, altura e força comandam o destino da bola pois determinam velocidade e potência do arremesso, como ainda a capacidade do goleiro em saltar e salvar o gol principalmente quando sofre o tiro de canto ou uma falta à distância, também chamados de “bola parada”.   

Para quem lê assiduamente as crônicas do futebol os exemplos são inúmeros, nacionais e internacionais, de como os princípios imutáveis de magna importância que norteiam seguramente os resultados das partidas são a aleatoriedade e a moral, popularmente conhecida como “garra”. Um uruguaio já mordeu um jogador adversário em tempos mais recentes: não era um canibal, mas soldado em defesa da honra da pátria, aquele minúsculo e simpático país. Praticado com os pés esse esporte é obrigatoriamente impreciso. Tente jogar com a mão uma bolinha de papel para dentro de um cesto de lixo à distância de uns cinco metros. V. deve ter êxito talvez muitas vezes. Agora, coloque a bolinha no dorso de seu pé (direito ou esquerdo é sua escolha) e tente fazer o mesmo: V. errará sistematicamente mesmo sendo jogador de futebol. Imagine agora que V. está correndo “carregando” a bola com seus pés e ainda ameaçado por um ou mais adversários que tentam atingi-la (ou atingi-lo, indistintamente). Sua eficiência em atirá-la ao gol fica muito baixa e a de atingir o objetivo mais baixa ainda. O imprevisível impera no futebol pois são 11 jogadores, o dobro do voleibol e do basquetebol, o campo de sua prática muito maior dando ensejo a enorme diversidade de ações do que nesses outros esportes também populares, não lhe é imposta qualquer limitação na condução da bola, como ocorre no basquetebol, ou no tempo que ela possa permanecer em cada lado, ou ainda pelas três batidas na bola pelos jogadores de cada lado como no voleibol. O futebol produz muito mais lesões físicas de difícil reparo que exigem tempo de recuperação maior em seguida a um jogo do que nos demais esportes com bola. No voleibol é possível jogar várias vezes, a cada dois dias; no futebol, nunca. Os técnicos tentam construir algumas formações para aprimorar a eficiência, mas são meras tentativas, jamais certezas num esporte comandado pelo imponderável. E como os dirigentes não sabem disso, ou não querem saber, competentes técnicos são contratados e expulsos com a mesma regularidade com que os jogos são vencidos ou perdidos.

Observem a estatística do escanteio. Juntam-se dentro da área (pois não há impedimento nesta ação) um punhado de jogadores. Porém, o time atacante, exceto quando está praticamente perdido bem ao final da contenda, não põe na área adversária mais do que meia dúzia de jogadores, e o time que defende tem naquele espaço, em geral, seus onze. Chances são maiores de a defesa bater na bola para longe do que dos atacantes conseguirem o gol, ainda mais porque esses têm que exercer pontaria enquanto o defensor limita-se a livrar-se dela de qualquer maneira. Imagino que suceda um gol para cada dez escanteios; para faltas batidas à igual distância, praticamente o mesmo. Nesses episódios do escanteio e faltas a eficiência aumenta para atacantes e defensores de maior estatura: é o predomínio atual do porte atlético sobre a habilidade com a bola com os pés.

Futebol é então o pleno reinado do caos, portanto, a imprevisibilidade do resultado é a regra mãe. De um rol de duas dúzias de países, hoje bastante habilitados nesse esporte, qualquer um deles pode vir a ser campeão do mundo, basta ter empenho, brio e o bafejo da sorte. Dificilmente se consegue apontar um time como favorito: ele tem que ter pelo menos a metade do elenco formada por supercraques. Só um Ronaldo (R7) não é suficiente para Portugal ser favorito, ou um Messi para a Argentina. Em 1970 e 1982 efetivamente tivemos meia dúzia de surper-craques, daí nosso favoritismo contra a Itália; deu certo no México em 1970, mas não foi suficiente na Espanha em 1982. Por quê? Por causa do imprevisível como a regra mais fundamental do esporte. A possiblidade de conseguirmos o hexa cai dentro desse pacote imponderável: é até possível, mas, remota com tantos times qualificados disputando gols que são, tanto obras fortuitas, quanto decorrentes da habilidade dos participantes. Não somos mais donos do destino futebolístico do planeta porque sempre vítimas ou algozes marcados pela imperiosa e fria estatística do caos. Não soframos mais por essa causa e continuemos a crer que nosso futebol é o melhor do mundo pois ainda somos os únicos pentacampeões e participantes com nítido destaque em todas as copas: o único país a sê-lo.

Aproveitemos o dia de hoje para brindar a França exultante pelo bicampeonato. Quem sabe em cem anos serão penta, como nós, pois que também subordinadas à imprevisibilidade.  Hoje os campeões são muito mais os sobreviventes na contenda do que incontestáveis soberanos no esporte.

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EDER C. R. QUINTÃO – É graduado em Medicina pela Escola Paulista de Medicina desde 1959, doutor em Endocrinologia, comendador da Ordem do Mérito Científico pela Presidência da República do Brasil, livre-docente de clínica médica, professor, pesquisador, membro da Academia Brasileira de Ciências e avô orgulhoso de três netos. “São o mais importante feito do meu CV”, segundo ele. Escrever não entra no CV, é paixão.

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