Grampo Reluzente, por Betina Lencia, para o Clube dos Escritores do Fifties Mais

Grampo reluzente, por Bettina Lenci

Deixando as rodas sociais, a intimidade, a ocultação, e mesmo a fofoca, o simplismo tomou conta definindo o que é ser politicamente correto e ser politicamente incorreto. Passou a ser público e abranger o pensamento e a liberdade de opinião julgando como progressista quem é a favor, por exemplo, das minorias, independente de algumas violências que deflagram ou como retrógrado quando se manifesta, também como exemplo, lembrando os bens públicos vilipendiados. Nesse ponto, para os maiores de 50 anos hoje, o mundo, rapidamente, parece que virou de ponta cabeça.
Na briga binária travada entre conceitos veio junto uma palavra de ordem: em nome da Igualdade, a Intolerância para com o diferente tem que ser zero. Assusta-me a ambivalência. Sem acordo, ao não concordar com o politicamente correto passo a ser uma pessoa intolerante. E para não ser definida como tal, escolho calar-me. E calando-se, a minoria que me lê sabe que a desordem em um país, cidade ou comunidade pode acontecer.

Mas este não é o tema a que me propus escrever nas minhas 360 crônicas, uma por dia . Esta introdução nada mais é do que Millôr Fernandes disse: livre pensar é só pensar a partir dos fatos recentes ocorridos nos quatro cantos do mundo.

Encontrava-me em um restaurante e não tão discretamente, diria sem educação, interessei-me pela conversa da mesa ao lado. Duas mulheres discutindo sobre espiritualidade, os homens, concluí, certamente seus maridos, porque mudos e entediados, engolindo um filet à parmegiana. Uma parece que tinha uma viagem marcada para o Nepal ou Tibet, poderia ser o Butão também. De qualquer modo entendi que era para os lados onde o budismo floresce.

Ela defendia sua escolha da região porque buscava, justamente, a espiritualidade. Pareceu-me que viajava em um grupo e, à tímida pergunta de um dos homens se o grupo era formado por budistas, ela respondeu de muito mau humor que não. – “Nem todos buscam a espiritualidade”! respondeu. Ele voltou a olhar para seu prato. Sua amiga, supus também naquele momento, perguntou-lhe porque precisava ir tão longe para se espiritualizar.

– “Você não entende,” responde ela.
– “Insisti para vocês virem junto e conhecer, ver e ouvir com seus próprios olhos e ouvidos a tranquilidade que estes países inspiram na gente.” Nessa altura fez um gesto típico da mãe judia em noite de shabat inspirando com gestos manuais, a luz das velas simbolizando a espiritualidade para dentro de si.
-“Ao estar junto aos mosteiros construídos longe de tudo, nos picos das montanhas, às rezas dos monges, junto às pessoas que não buscam bens materiais, a paz espiritual invade a gente.
“Mas como você sabe tudo isso se nunca foi para lá,”? perguntou o cavalheiro, talvez marido.
“Ora eu ouvi do professor.” O prato agora vazio, o marido fitou sua mulher com um olhar de espanto resignado. A outra mulher, voltou a falar, mas olhando para os senhores, visivelmente irritada.
– “Você vem insistindo com esta viagem que nenhum de nós quer fazer. Para com isso! Que espiritualidade é essa que você vai buscar tão longe se nem conhece a sua própria religião, vive dizendo não saber onde estão as suas raízes que tanto reclama não ter. Vive falando em não se sentir pertencida a lugar algum. É no Butão que você espera encontrar tudo isso, olhando a paisagem e rezando com os monges? Me faz um favor: vamos para a Holanda, Inglaterra, Suíça, qualquer lugar que a gente já conhece e onde ainda temos muito para aprender. Nesse momento, o outro homem que permaneceu calado o tempo todo falou:
– “Não vá a lugar algum buscar nada. Espiritualidade não se encontra entre as pedras e o azul do céu. Encontra-se dentro da gente, exercendo-a dia após dia. É uma religião silenciosa que se passa entre o coração e a alma. É entender que a Vida não consiste de uma única verdade. É aceitar que ela é Nada além da sobrevivência digna ao confrontar os obstáculos que nos rodeiam e afetam a todos por igual. O espírito está ao nosso lado durante o dia e acima de nós à noite. Não está além de nós. Quando você descobrir este ponto saberá que está viva e terá encontrado a paz que procura fora de si sem achá-la. Pare de procurar! É a única forma de encontrar o que se procura”!

Quando eles acabaram a sobremesa, olhei de esguelha e percebi que o último a falar era um judeu e imaginei ser ele, talvez, um rabino falando do seu púlpito. Usava um chapeuzinho preto preso com um grampo reluzente em cima da sua cabeça.
__________________________________________________________________________________________________

BETTINA LENCI – Uma empresária que se realizou tendo como início profissional a história da arte e a fotografia, mas que, posteriormente, descobriu que lendo e escrevendo é possível criar um mundo com um olhar agudo sobre o cotidiano de todos nós.

 

 

2 comentários

  1. Gostei muito de sua crônica, Bettina ! E que idéia interessante esta de escrever um texto por dia !!! Parabéns e até o próximo ! Quando lançar todos em forma de livro, me avise !

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *