Clube dos Escritores 50+ Lourdes Gutierres Gloria

Glória,
por Lourdes Gutierres

I – O Caleidoscópio

Atrás da pilha de livros, Glória encontrou o tubo vermelho com faixas verdes. Como não haveria de reconhecer? Nele, ferrugens e manchas eram testemunhas de seu longo tempo de existência. Sabia de onde viera e porque estava guardado. Tomou-o entre as mãos; seus dedos deslizavam pela superfície do papel brilhante. Dentro dele, o som das lembranças. Projetou-o em direção à luz, foi rodando lentamente – a cada movimento, nova configuração colorida. Qual a mais bonita, não saberia escolher. Tentava identificar com imagens conhecidas, percebeu que eram singulares, pelo formato e cor.  Também única e especial era sua dona, a amiga de infância: Nina.

Estava ali por empréstimo, nunca fora devolvido porque… ah, ao lembrar certas coisas, sentia seu coração perder o ritmo. Sentou-se na poltrona de vime; enquanto girava o cilindro, começou a refletir a respeito das mudanças das formas devido ao seu impulso. Percebeu que sua ação desencadeava um processo do qual não podia exercer controle. Assim não seria na vida? Quantas vezes sentiu o chão se abrir ao dar um passo em falso? Quantas vezes tudo ficara em suspenso por não encontrar um rumo? Olhou em direção ao armário – até há pouco, era um lugar seguro, onde poderia depositar significâncias de sua vida; de repente, um esquadrão de insetos, cupins, invadira aquela área sagrada, engendrando sua destruição. Como agir diante de cenários imprevisíveis?

Embora tivessem praticamente a mesma idade, Nina possuía conhecimentos e maturidade que a projetavam entre todos os amigos. Aos doze anos, já tinha peitos salientes, cintura fina e quadris largos; chamava atenção dos rapazes também por isso, embora se vestisse de forma discreta; não gostava de se exibir. Glória aprendera com ela o gosto pela leitura, seu pai era professor universitário. Era dele a biblioteca que ficava na edícula, no fundo do quintal; de lá saíam os livros que ela lhe emprestava,  assim conheceu Machado de Assis, Graciliano Ramos, Carlos Drummond de Andrade, e tantos outros. Gostava de consultar as enciclopédias, mas estas não podiam sair da estante. Por mais que lesse e estudasse, os conhecimentos da amiga estavam sempre além, interessava-se por diversas áreas, até mesmo astronomia. Sabia distinguir estrelas e acompanhava o movimento dos planetas. Lembrou-se de quando ao avistar um brilho no céu exclamou:

– Olha, uma estrela cadente, vamos fazer um pedido!

Nina riu dela, explicando-lhe que não era estrela e sim um meteoro que se desfazia na atmosfera, “ilusão, tudo ilusão”, afirmara.

No caleidoscópio, o movimento das pedras produzia formas harmônicas; muito diferente do que acontecia com Glória, quando jovem; movia-se de maneira desconexa, mão e braço se estranhavam, as pernas não se articulavam bem com os pés, vivia tropeçando, com os joelhos ralados. Sem falar dos seus humores – rapazes lhe davam comichão, apesar de considerá-los brutos e ignorantes; sua risada era inoportuna e seu choro camuflado. E as explosões de raiva quando contrariada, bom nem lembrar! Nina era a única pessoa com a qual Glória podia fazer confidências, sua mãe ficava furiosa, queria saber o que tanto cochichavam e tentava criar empecilhos para a relação das duas. Aprenderam logo a arte da dissimulação, de manter segredos.

A biblioteca era o esconderijo delas, mas algumas vezes ficava interditada. Além de ser um lugar de estudo, o pai costumava receber amigos, lá ficavam horas e horas conversando baixo, com a porta fechada, não queriam ninguém por perto; elas permaneciam na varanda que dava para a rua. Foi numa estante dessa biblioteca que Glória encontrou o caleidoscópio; como o pai estava chegando, Nina disse:

– Pode ficar com ele, depois você traz de volta.

O pai entrou na biblioteca apressado, suando; ele, que sempre fora um homem aparentemente tranquilo, apresenta visíveis sinais de agitação; com gestos bruscos foi examinando estantes, abrindo gavetas do armário e com a voz entrecortada, pediu a elas que o ajudassem com a papelada; iam rasgando pilhas de documentos e pondo no lixo, enquanto ele queimava livros e revistas numa fogueira no quintal. A família sumiu durante a madrugada; não houve despedidas, os vizinhos disseram que ele fugira da polícia, estaria envolvido em um movimento para derrubar o governo militar. De fato, alguns dias depois, chegaram policiais em uma perua grande e invadiram a casa. Pelas frestas das janelas, os vizinhos acompanharam o movimento, não tiveram coragem de dar as caras na rua. Depois disso, o silêncio. Ninguém ousava indagar pela família, sequer pronunciavam os nomes deles.

As pedrinhas do caleidoscópio foram dando forma a Nina; em vestes coloridas, ela sapateava, saltava, sorria e nada disso era ilusão.

                                                                  ***

II – A Xícara

Além de tudo, não tinha água. Também nenhum sinal de chuva. Pó e seca. Flores murchas. Só a rosa amarela fingia não se importar. O jardim estava praticamente abandonado, algumas folhagens resistentes crescendo aqui e acolá. A atenção de Glória estava concentrada naquilo que já lhe parecia uma eternidade, arrumação do armário infestado por cupins. Eram caixas, pacotes, embrulhos. Precisava desatar nós. O suor. A sede. Recomeçou pelo que lhe parecia mais simples – a tampa do baú não estava trancada. Dentro dele, a toalha de crochê abrigava um objeto pequeno. Colocada na mesa de centro, a toalha foi sendo aberta parte por parte, até surgir o presente da avó quando menina, a xícara de cerâmica azulada, sem alça e com uma lasca na borda. Suas mãos trêmulas apalpavam o vão na xícara. Sentia lascar partes de seu corpo, e, o nó da garganta, como desatar?

Nem passados trezentos anos esqueceria. O insepulto manifestava-se sem ser clamado. Lembrava-se bem, tinha sido tudo de repente, também calor; com sede, foi em busca da bica, sim, lhe haviam dito: atrás do bambuzal havia água corrente, fresca, cristalina. Em passos lentos atravessou o canteiro de dálias; depois do galinheiro, dobrou à esquerda; no caminho estreito, o frescor da mata e o som de seus pés descalços nas folhas secas. Levava na sacola de pano aquela xícara. Divertia-se colhendo frutas maduras: uvaia, cambuci, gabiroba, algumas comeu no percurso, outras guardou na sacola. Junto à fonte, estendeu os braços, foi espirrando água no rosto suado, molhou a cabeça, o corpo. Podia ver as pedras no fundo do riacho, pequenas folhas navegando, um sabiá sacudia as penas molhadas. De repente, o barulho de pisadas esmagando o solo foi se aproximando, surpresa deixou a xícara cair; ao abaixar-se para pegá-la, sentiu duas mãos vorazes lhe agarrando:

– Tio, tio, tio não! Não! Para, tio, para!!!

Ávido, ele não se continha diante de sua presa. Tolhida pela perplexidade, estancou, emudeceu. Os olhos fixos no vazio, apenas a boca entreaberta, nenhum som mais.  Dos grilos, pássaros, insetos, só silêncio. De repente, galopes de cavalo, alguém se aproximava, o tio fugiu apressado. Glória, não se mexia. Recostou-se na pedra, também ela minério, imóvel. O sopro bíblico recompôs suas trincas, conhecera a agonia de fêmea. Uma vespa passeava pela sua mão estendida, não a picou. 

No caminho de volta, o testemunho da natureza: as folhas caídas das árvores, ante o inusitado, planavam no ar, sem rumo, nem direção; o jacu, de asas abertas, elevou a cabeça em prece; a cigarra emudeceu; o urutau atado ao ipê entoava seu lamento, sobriamente. No caminho sem volta, decifrando o ocaso, o céu avermelhou-se.

Chegou à casa ao anoitecer, tia Celina, irmã de sua mãe, se entretinha na varanda com a agulha de crochê e linhas coloridas, confeccionava a toalha de mesa com desenhos de rosas, dálias, folhas, “um jardim colorido”, dizia. Ao ver Glória se aproximar, espantou-se:

 – O que aconteceu com você?  Disse apontando para os joelhos sangrando. –  Rasgou o vestido! Está suja, molhada, que houve?

Ante sua insistência, a sobrinha recolheu forças para pronunciar em som abafado:

– Caí.

O jantar estava servido, na cabeceira da mesa, a tia; do outro lado uma cadeira vazia. Celina justificou a ausência do marido, tinha saído às pressas para resolver negócios na cidade.  Sem fome, Glória ciscava a comida no prato.

– Não está gostando? É tudo da fazenda, saudável, orgânico. Você precisa comer para crescer, ficar uma moça bem bonita e logo, logo casar. Já estou preparando seu enxoval. Viu a toalha de flores? Vai ser para seu casamento, linda, não é? Coma, coma, tudo tão gostoso.

A avó resmungou algo que ninguém entendeu, em seguida tomou a tigela de sopa nas mãos, começou a sugar o caldo de forma estridente, engasgou-se, teve de se retirar da mesa.  O primo tentou retomar o assunto do dia:

 – Como foi o tombo?

– Escorreguei no lodo, na lama. Água fedida, micróbios, vermes, que nojo tudo isso! Que nojo, nojo…

O mugido da vaca Mimosa eclodiu na sala, congelou a cena. Entreolharam-se. O primo mais novo perguntou:

– E de sobremesa, tem sagu?

                                                                 ***

III – O Desacato

Poderia ser um simples tropeção. Não foi. O bule antigo da avó caiu das mãos de Glória, espatifando-se no assoalho do porão; de dentro dele, saltou o pequeno touro negro. Poderia ser um simples souvenir espanhol. Não era. Negaria até a morte que o tivesse guardado, no entanto, estava lá, junto aos cacos, entre lembranças díspares. Por que naquele vaso? Deveria tê-lo jogado no mar, em cratera, em algum lugar de onde não pudesse nunca mais ser visto. Mas não, estava ali, aos seus pés, junto à lembrança da avó que fugira da fome e da opressão na Espanha, em busca de mesa farta – nunca teve, apesar de tanta labuta. Ninguém foge ao destino,  ensinava-lhe a avó. Contara-lhe a história de Jonas, o profeta.  Ele tinha por missão pregar em Nínive, negou-se, foi de navio em direção oposta, caiu no mar; levado por um peixe até o local temido, teve de enfrentar os desafios que lhe eram destinados. O touro que a desacatava naquele momento, não estava em Nínive, estava em sua casa e lhe arremessava ao inescrutável passado.

Na Espanha, ela pesquisava a influência árabe na arte. Era sábado à tarde quando  resolveu visitar a Mesquita-Catedral, em Córdoba. Os arcos vermelhos e brancos, as colunas, talvez a pouca luminosidade a transportaram para outro cenário: via-se com vestimentas escuras, a cabeça toda coberta, somente com os olhos à mostra; com uma ânfora  no ombro esquerdo, caminhava pelas ruelas ao som de alaúde,  sentindo o cheiro que saía dos fornos das casas. Naquela estrutura mística se interligavam véus, música, aromas, perpassando tempo e espaço. 

Não saberia dizer quantas horas permaneceu lá dentro, o certo é que talvez por ter saído por outra porta, não conseguia reconhecer a direção do lugar onde estava hospedada. Caminhou desnorteada até encontrar um homem que fazia algum reparo em frente ao restaurante “El Cordobes”, foi solícito, acompanhou-a até o hotel. Sem ser bonito, era atraente por seu porte musculoso, braços fortes, contudo foram seus olhos escuros que lançaram a armadilha;  passou a depender desse olhar, como se tudo em sua volta estivesse encoberto por sombras, então, precisava ser orientada, protegida. Qual caminho? Era sempre ele quem decidia, ela, simplesmente seguia o rumo indicado, sem nunca manifestar contrariedade.

Para ela, tourada era uma coisa brutal, entretanto, iam juntos ao espetáculo na praça de touros e ouvia seus gritos ao toureiro: “mata-lo, mata-lo”. Encolhida, ela tremia, tinha pena do touro, também não queria ver ninguém morto, no entanto o acompanhava sempre. Na saída,  ele a puxava pelo braço, “adelante”, dizia com pressa. E por perto, em qualquer beco ou canto, ele se lançava em cima dela com suas patas, suas garras, seus tentáculos. Poderia escapar? Seus encontros não tinham horas marcadas, a qualquer hora do dia ou da noite, estava sempre pronta. A fome dele era insaciável, ela não lhe bastava, vivia à procura de alguma presa; mesmo em sua companhia, flertava com outras mulheres sem disfarçar. Ela se via em uma arena, tendo de digladiar o tempo todo com morenas voluptuosas; no entanto, se sentia frágil como uma corça; também sem glamour, nem graça; era loura, magra, pernas finas, sem curvas nem saliências; na certa, seria derrotada em todas as batalhas, mas, o ciúme a descontrolava; sem ele, perderia o chão, o rumo, ficaria vulnerável às intempéries – tinha de ser seu! Somente seu e para sempre, era o que repetia imersa em fogo ardente, como controlar?

No show de flamengo, o olhar dele se fixava na bailarina sinuosa em suas roupas decotadas. Ela ao seu lado, recatada, com blusa de gola e saia abaixo dos joelhos;  sabia do risco que corria, não era páreo para aquelas espanholas. Tentava  agradá-lo de todas as maneiras, cedia às suas vontades, embora a fizessem sentir vulgar. Quem era ela? Por não ter resposta, evitava fazer tal pergunta,  concentrada naquele jogo de sedução.

Por desconhecimento de si mesma, não identificou que tinha por dentro um vulcão pronto para irromper-se em chamas. Não tinha mais controle de seu rumo. Precisava voltar para casa, no entanto, as estações mudavam sem que ela se desse conta do tempo; indiferente ao frio ou calor,  permanecia naquela terra distante. Seria o inseto na teia da aranha, sendo devorado sem escapatória? Ou era o touro que fixava as patas na presa, no caso, ela?  Vivia imobilizada. O certo é que ao seu lado sentia-se segura, ele sabia de guerras, golpes, dos perigos da vida e tinha estratégias apropriadas, além de contar com sua compleição física privilegiada. Demonstrava nunca ter dúvidas, senhor de si, estava sempre do lado certo, repetia isto à exaustação. O sonho de estudar História da Arte, Glória deixara de lado ante o questionamento dele:

 – De que adianta esse conhecimento, quer virar uma enciclopédia ambulante?  

Ela aos dezoito anos havia saído da casa paterna para viver a própria vida; queria ser livre, sem precisar dar satisfações a ninguém; aprendera a se virar sozinha para garantir seu sustento, dava aulas, fazia artesanato, vendia cosméticos; tornou-se independente. Com ele, transformara-se em uma criatura insegura, temerosa de se fragmentar com qualquer revés da vida. Que tanto temia? Na verdade, sequer tinha percepção de seus medos. Lembrava-se de uma foto sua, tirada na época – o semblante da inércia: boca entreaberta, sem expressão, olhar sombrio, parecia ter esgotado toda a energia de seu ser, sem ter forças sequer para se indagar: o que estou fazendo aqui?

Agora, depois de tanto tempo, ante aquela arena insólita no chão, irrompe a chama adormecida:

– Não posso, não quero mais. Basta! Vou trancar este porão, que os cupins devorem tudo. Basta! Não volto mais, que caia toda a casa, não recolho cacos. Basta!

E o touro preto ficou estendido no assoalho do porão, sangrando.

8 comentários

  1. Lourdes, gostei muito da construção que você montou para contar em cacos as memórias de Glória. Com isso seu texto ficou intrigante e envolvente e me fez pensar: Memorias boas ou perturbadoras são cacos da vida que nos perseguem, melhor mesmo que tudo seja comido pelos cupins e soterrado.

    1. Ouvi, certa vez, que, na natureza, os cupins servem para acelerar a destruição necessária de tudo que deixou de ser, de todas as coisas que não participam mais da voracidade da vida revolvendo sobre si mesma, gosto dos cupins desde então…

  2. Gosto muito do conto, me toma e dói Gloria se buscando e guardando segredos. Gosto dos comentários d@s amig@s. O touro sangrando, no porão, ainda pode ser jogado no mar. Os cupins vão ajudar.

  3. A construção da narrativa e das memórias é envolvente e instigante. O leitor fica pensando o que será de Glória ao destruir as memórias a serem levadas, o touro ensanguentado fica no porão, irá renascer? Muito bom

  4. Gostei do comentário do Carlos, o insepulto manifesta-se sem ser chamado.
    Não tem jeito, sempre acontece. Agora já pode ser devorado pelos cupins, vorazes que são.
    A estrutura circular, instigante, liga o início ao final, o caleidoscópio aos cacos.Muito bom.

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