Certa vez ouvi o maestro Neschling dizer que devíamos ouvir coisas novas, senão passaríamos a vida ouvindo Brahms e outros românticos, clássicos e barrocos. Perderíamos muitas coisas boas que estavam acontecendo.
Por curiosidade, procurei entre compositores eruditos recentes resposta para a afirmação do maestro e tive a feliz surpresa de encontrar a obra de Giya Kancheli, de quem nunca tinha ouvido nada. É um compositor maravilhoso e, acima de tudo, um ser humano fora de série.
Giya Kancheli nasceu em Tbilissi (Georgia) em agosto de 1935, faleceu em outubro de 2019 aos 84 anos. Estudou composição no Conservatório Estadual de Tblissi, trabalhou como compositor freelancer, escrevendo músicas para filmes e incidentais para o palco. Ensinou composição no Conservatório Estadual depois tornou-se diretor musical do Teatro Acadêmico Estadual Rustaveli em Tbilissi. Kancheli foi presidente da União dos Compositores da Geórgia. Desde a dissolução da União Soviética em 1991, viveu na Europa Ocidental: de início em Berlim, e, desde 1995, em Antuérpia, onde se tornou compositor-em-residência na Royal Flemish Philharmonic da Bélgica.
Conhecido como compositor de obras de grande porte, escreveu sete sinfonias e uma “liturgia” para viola e orquestra entre outras. O advento da glasnost trouxe crescente exposição e reconhecimento da “voz musical distinta” de Kancheli, o que o levou a performances cada vez mais frequentes na Europa e América.
Suas obras tendem a ser meditativas (e eruptivas) completamente diferentes de qualquer outro compositor de sua geração; alterna entre quieto, pensativo e inclui até mesmo passagens reverentes, com rajadas declarativas repentinas que são intencionalmente concebidas para acordar o ouvinte. Isso pode até ser uma espécie de declaração política: acordar o público com o caos ao seu redor.
Embora seus trabalhos tenham explorado os temas elementares de luto, medo, solidão e protesto, eles também abordam tópicos como nostalgia e inocência. Seu credo pessoal talvez seja melhor expresso em suas próprias palavras: “a música, como a própria vida, é inconcebível sem romantismo. O romantismo é um grande sonho do passado, presente e futuro – uma força de beleza invencível que se eleva acima e conquista as forças da ignorância, intolerância, violência e maldade”.
Comentaristas observaram que as sonoridades distintas da música de Kancheli nascem do uso do silêncio. De fato, o próprio Kancheli afirmou que o que mais o fascinava era “o silêncio misterioso que precede o surgimento de um tom”. Uma característica marcante de sua música é o uso do silêncio como um meio de aumentar as impressões e respostas do ouvinte.
Outro tema recorrente nas obras de Giya Kancheli é a revolta contra a violência e a guerra. Comumente o compositor recorre às crianças, que personificam inocência, pureza e abertura, como intérpretes.
Em 2013, para comemorar o 20º aniversário da Academia de Kronberg, criou um novo trabalho vocal usando um coral infantil, juntamente com violino, violoncelo e orquestra de câmara, intitulado “Angels of Sorrow” (Anjos da Mágoa). Esta obra estreou em outubro de 2013 com Gidon Kremer, Giedre Dirvanauskaite, o Coro Infantil Shchedryk Kiev e o Kremerata Baltica sob a direção de Nikoloz Rachveli. Dois dias depois, foi novamente representada pelos mesmos intérpretes na Filarmônica de Berlim no evento de conscientização sobre a difícil situação dos direitos humanos e dos presos políticos na Rússia, intitulado “Para a Rússia com amor”. Kancheli dedicou o trabalho a todas as vítimas de violência e despotismo.
Giya Kancheli comenta:
“Os eventos no mundo inconscientemente e inevitavelmente influenciam meu processo criativo. Não posso permanecer indiferente às infinitas manifestações de crueldade e violência, e é provavelmente por isso que a tristeza e a dor dominam minha música. Com a ajuda das vozes inocentes das crianças e das estruturas melódicas mais simples, tentei, tanto quanto pude, dar expressão ao meu apelo pela força do espírito humano – o poder inabalável do espírito que eleva a humanidade acima de um regime imoral.”
Agora assistam a peça “Angels of Sorrow”, no YouTube, serão 23 minutos do mais puro sentimento:
Léo, obrigada por dividir sua sensibilidade e conhecimento . Aprendo sempre com você . A música é linda .
Muito bom! A música – e o texto tmb.
Nós, lá em casa, sempre fomos contra compositores vivos. Só íamos à sala são paulo se fosse para ouvir compositor morto.
Giya já se foi [não faz nem um ano!]; entretanto, mesmo antes disso, seria exceção à nossa regra familiar!
Muito bom, realmente! A música é mesmo fascinante, e em alguns outros álbuns é possível também perceber e sentir a questão dos silêncios, como em Magnum Ignotum e Exil, ambos obras primas! Obrigado, Leo, pela indicação e texto sempre certeiros!