Blog Bettina Lenci GE

GE,
por Bettina Lenci

Crianças gostam de abrir a geladeira.

Quando eu era criança, abria várias vezes por dia, mesmo sem fome.

Às vezes por tédio, outras por vontade de lambiscar. Era um movimento automático. Eu ficava em frente dela, a porta na mão, pensando o quê e se queria realmente comer alguma coisa. Uma espécie de relaxamento porque ocorria principalmente quando a lição de casa parecia não terminar nunca.

A cada dia a disposição das coisas dentro da geladeira mudava o que dava razão para eu ficar mais tempo com a porta aberta, procurando, o que muitas vezes não se encontra em geladeiras. Era quando brigavam comigo dizendo que eu ia descongelá-la.

A primeira sensação de autonomia que tive dentro de casa, além dos interregnos da lição do dia, foi a permissão de abrir a geladeira sem muita razão. (Em casas onde empregadas são contratados para fazerem o serviço, essa sensação é pouco sentida. A cama, a limpeza, a comida, tudo já nasce feito.)

A geladeira era uma máquina funcional, equivalia à televisão e a rádio vitrola, que também poderiam ser veículos para meu sentimento de independência, mas nestas só pude mexer muito mais tarde.

A geladeira  por sua vez, a todos, era permitido abrir e fechar. Ela não tinha dono. Não tinha uma importância consciente para os habitantes da casa. O movimento de abrir e fechar, com o TLEC característico, tanto na ida quanto na volta, – apesar de que na volta era mais sonoro, – é lembrança até hoje.

A geladeira era uma GE, cujo logo de metal eram duas letras sinuosas incisas na porta e, abaixo delas, escrito em letra cursiva bonita lia-se “ General Eletric”. O logo era elegante e a geladeira formosa e branca, grande e espaçosa, carregava este símbolo com garbo. Tenho certeza que ninguém ligava para ela, porém para mim fazia parte da vida que ali escorria entre a cozinha, a copa e meu quarto.  Quantas vezes não a abri, automaticamente, só para tentar dissipar mágoas e dúvidas?

Quando o silêncio baixava na casa podia-se ouvir uma espécie de RUMMRUMM, quase silencioso, com o qual eu adormecia agradavelmente. Sabia ser ela o único “personagem” da casa que trabalhava de noite, quase uma amiga secreta.

Em dia de feira, a profusão dos novos alimentos, que enchiam os vácuos deixados durante a semana, era um marco no meu calendário, com a incrível capacidade de cravar em mim, no abrir e fechá-la, um ritmo, uma cadência do tempo e a segurança de que nada mudaria em minha vida.

A administração de uma geladeira é uma das principais logísticas da casa bem administrada. Os restos eram colocados na primeira das prateleiras para não serem esquecidos; o lombo, o bife à milanesa frio, arroz, feijão e o purê de batata tinham o poder de me lembrar do dia anterior e a certeza que os veria no meu prato novamente. Abrir a geladeira e olhar já era imaginar o menu da semana. Laticínios na segunda prateleira. Na terceira, os legumes. Quanto aos doces guardados na quarta prateleira não me era autorizado voltar com a colher de arroz doce à tigela para mais uma colherada porque, diziam,  a sobremesa azedaria. Pelo fato da prateleira estar abaixo da minha altura, à época e não ter dado ouvidos à regra, a segunda colherada, talvez por castigo pela desobediência, espatifava-se no chão. A carne e o frango ficavam na única gaveta. Na lateral, ovos e temperos.

Mas era a segunda prateleira que aguçava minhas papilas visuais e gustativas. O sabor das frutas e legumes me era indicado pelas cores, formas e tamanhos e era nessa direção que eu geralmente esticava o braço, encantada.

Estas lembranças são como ecos enviados para outro lado do mundo que, instantaneamente, no meio do nada, ressuscitam.

Hoje, fico com a impressão de que não lembramos o dia de hoje, amanhã.

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Um comentário

  1. Os “sabores” vindos da geladeira se transmitem à essa gostosa crônica. Ficamos envolvidos pela conversa que, ao final, traz aquela sensação de quero mais.

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