CENA UM
Um passe de mágica
Gabriela guardou na memória um espetáculo de mágica. Num domingo à tarde, ainda adolescente, acompanhada de seus pais e irmãos, assistiu no Teatro Avenida, que ficava na rua principal de sua cidade natal, Botucatu, a cena que guardou vida afora secretamente.
Concentrada na roupa do elegante mágico, nas pombas que voaram quando ele tirou a cartola da cabeça, fixada na casaca vermelha cintilante do artista, despertou com uma música e um tintilar de pedras pretas que caiam uma a uma em linha reta.
Na verdade, eram as peças de um jogo de dominó que, armadas em forma de muralha, sem que o mágico as tocasse, haviam voado para dentro de uma caixa transparente. A muralha não só não tombou como os números de cada peça permaneceram na ordem inicial.
O mágico deu um volteio com os braços, as mangas da casaca majestosamente dependuradas no ar e ao brandir a varinha longa, miraculosa e prateada, as peças de dominó foram sendo derrubadas, uma a uma, em carreira.
Gabriela impressionou-se quando a ajudante do mágico demonstrou como as seis bolinhas brancas davam as costas para a outra peça de seis bolinhas brancas e assim por diante todas as bolinhas tinham um par justaposto a outra peça igual.
As peças de dominó voltaram a formar uma muralha invisível a qualquer artefato que pudesse reativá-la: nem botão ou alavanca, nada que tocasse na caixa. Isto é, a muralha caiu e levantou-se magicamente, as seis bolinhas com seu par de seis bolinhas.
Mas o surpreendente foi que Gabriela memorizou a cena até os dias de sua velhice, além da paixão incandescente pelo mágico.
Muito tempo depois deste evento marcante, Gabriela com mais de noventa anos, um processo de Alzheimer a caminho, embaralhando as peças de dominó , a cena da adolescência e o magnifico mágico, me contou o principal detalhe marcado em sua memória e repetido por várias vezes: as peças de dominó, ao voarem para a caixa e formarem nova muralha, tinham sido antes bem misturadas dentro da própria caixa transparente, para, pasmem, caírem, de pé, alinhadas em muralha, voltando à sequência anterior das seis bolinhas brancas
Pode lhes parecer uma história inverossímil, mas conheci bem Gabriela. Foi minha mãe e eu sou o filho do mágico.
CENA DOIS
Um toque
Ouço, paciente, minha mãe repetir infinitas vezes esta história. Conforto-a em sua melhor lembrança enquanto olho, atento, a sala de estar contígua à sala de jantar e o corredor que leva para os quartos de nossa grande casa.
Meu pai recusou-se a aplacar minha curiosidade sobre o segredo engenhoso criado por ele para fazer com que as peças de dominó parassem de pé, em forma de muralha, voassem para uma caixa fechada, misturando-se e depois inverter o processo e ainda manter as bolinhas par a par. Qual seria o botão escondido ou o fio invisível? Infelizmente em relação à minha mãe não há mais botão a ser tocado nem fio a ser puxado e meu pai levou este segredo de magia para sua tumba.
Morávamos no casarão do meu avô, de frente à praça do coreto, em Botucatu. O mágico foi um colecionador, e como não podia deixar de sê-lo, exato e detalhista. Os móveis são antigos, escuros, de jacarandá. Santos e peças de sacristia, tapetes, pratos de famílias heráldicas da cidade estão dependurados na parede. Peças que suponho valiosas.
Ao lançar um olhar piedoso sobre o cenário, enquanto ouvia, desatento, Gabriela repetir-se, as peças antigas de prata e porcelana, numa fração de segundo, ruíram, uma a uma, como um edifício sendo implodido. Uma cortina cega se antepôs aos meus olhos e não consegui enxergar mais nada a não ser um monte de madeiras torcidas devoradas por cupins.
Ao piscar dos olhos, tudo que foi colecionado por décadas, voltou ao antigo lugar. O vazio de sentido tomou conta de mim por um momento longo demais. Despertei na certeza de que tudo naquele casarão em que cresci estava desgastado, sem mais história, beleza e serventia.
Quando voltei a atenção para minha mãe que continuava com sua história, entre minhas lágrimas constrangidas, a tristeza sobreveio. Na sua cabeceira, a varinha mágica repousa dentro da caixa acrílica transparente.
Penso se Gabriela, com o toque do seu dedo, poderia ter derrubado – como a muralha de dominó quando cai em linha reta, sonoramente uma sobre a outra – uma linhagem de valores e idealizações piedosamente conservadas?
Não creio! Ela não voou de uma caixa para outra, não embaralhou os hiatos da vida. Uma muralha cravou solidamente sua memória. Ela ainda acredita que peças de dominó voem!
Belo exercício sobre as reminiscências e os labirintos do tempo. Parabéns, Bettina.
Parabéns. Belo texto.
Peças do hiato da vida, que boa lembrança. Muito bem narrada, parabéns, Bettina.