Clube dos Escritores 50+ Adolfo Leirner Futebol

Futebol: foi-se o tempo,
crônica de Adolfo Leirner

Foi-se o tempo. Quando garoto ia ao Pacaembu todos os domingos. Às vezes, também aos sábados. Se estivesse de férias no Guarujá, atravessava a balsa para assistir ao jogo em Vila Belmiro. Antes de sairmos para o estádio, eu, meu irmão e, às vezes, os primos, fazíamos o aquecimento batendo bola defronte da casa ou na pracinha. A rua era território da molecada, lá se podia jogar à vontade, e ir desacompanhado ao estádio era coisa natural.

No Pacaembu, quase sempre ia de cadeira numerada coberta, às vezes comprada de cambistas que ficavam na entrada acossando os torcedores. O portão de ingresso era por cima: a visão da torcida, o gramado lá embaixo distante, o uniforme colorido dos aspirantes jogando a partida preliminar era eletrizante. O público, quase sempre, de paletó, chapéu e gravata.

 Os jogadores pareciam miniaturas. O bate-bola de aquecimento era silencioso, só se ouvia o barulho da multidão e dos alto falantes: “Tudo mais é lero-lero. Discos, de fato, Casa Sotero”. 

No começo do jogo, o estádio ficava em silêncio, em suspenso, aguardando uma jogada perigosa. Quando acontecia a primeira, o barulho da multidão fazia coro.  Como eram as expressões vocais da torcida nos estádios? Bola na trave: Uhhhhh! Pênalti marcado: barulheira aos gritos de ladrão. Quando o gol acontecia, metade gozava gritando Goooool! enquanto a outra, desconsolada, olhava os jogadores adversários se abraçarem. Naquele tempo não havia o show dos goleadores. Não davam cambalhotas, não beijavam a camisa, não se ajoelhavam, não faziam gestos para o público. O time marcador, depois de alguns abraços, retornava junto ao seu lado do campo lentamente, como guerreiros que venceram uma batalha e se preparam para outra. 

O técnico do time poderia ser o chofer de praça do ponto da esquina ou ter alguma outra profissão simples. O time treinava uma vez por semana. Nos outros dias, os jogadores trabalhavam. Nas horas de lazer, desfilavam sua popularidade na Avenida São João e tomavam umas no Juca Pato, sempre de paletó e gravata. Cada clube tinha seu modesto campo: o do Corinthians era o Parque São Jorge, o do São Paulo era o Canindé, o do Palmeiras, o campo da Água Branca, e assim por diante. O estádio do Pacaembu, lindo projeto de Lúcio Costa, só foi inaugurado em 1940. De maior porte, servia aos jogos dos “grandes times”.

Já em Vila Belmiro, estádio pequeno, o espetáculo era diferente. O campo ficava bem próximo do público: eram visíveis os fios dos bigodes, os pêlos das pernas, as chuteiras gastas e até os buracos nas meias. Os uniformes eram de algodão, surrados. Não tinham publicidade nem sequer nome, apenas o número. Saudade da centralização do 7, Claudio, da bicicleta do 9, Leônidas, da armação do 4, Bauer. Alguns usavam gorrinhos de malha com um cadarço pendurado na nuca. Os chutes do aquecimento tiravam som da bola. Durante o jogo, nas disputas, ouvia-se o ruído das chuteiras raspando na grama, e a bola na trave emocionava com sua sonoridade peculiar de metal oco. Diferentemente do Pacaembu, aonde o som vinha da torcida, na Vila ele se misturava aos barulhos do campo, dando vida ao espetáculo. O gol vinha com o inesquecível chiado da rede, enfunada pela bola.

Terminado o jogo, era aquela maré lenta do público saindo. Eu era pequeno, baixinho, e me movia invisível no meio dos adultos. Toda a libido tinha sido gasta, mas não desperdiçada. 

Ao voltar para casa, sempre batíamos bola. Montávamos um arremedo de campo no quintal. A porta da garagem fazia as vezes da trave. Cada gol marcado era acompanhado do estrondo da porta de aço ondulado que tremia com a bola. De noite, duas cadeiras no quarto, uma bola de meia e o jogo seguia até cairmos duros e suados. Assim terminava o dia todo feito de futebol. Durante a semana, comprávamos diariamente a Gazeta Esportiva e colecionávamos as figurinhas das Balas Futebol. Quando consegui preencher o álbum, fui até a Rua do Gasômetro trocá-lo pelo brinde. Saí feliz com uma bola de futebol que estourou no primeiro dia.

O futebol valeu-me uma grande tristeza. De verdade. Em 1950 aconteceu o Mundial de Futebol no Brasil. Para satisfazer os bairrismos tínhamos praticamente dois times. Um, com base paulista, jogava no Pacaembu. Outro, com base carioca, no Maracanã. Apesar dessa besteira do técnico Flávio Costa, íamos chegando às finais com grandes goleadas: 7 a 1 contra a Suécia e 6 a 1 contra a Espanha. Na final, bastava o empate ao Brasil. Favoritos, jogamos contra o Uruguai, time sem pretensões depois de uma campanha fraca. Seguramos o empate até os 11 minutos finais, quando Gighia marcou um gol entre a trave e o goleiro Barbosa. Ficamos todos diante do rádio em silêncio, um silêncio na alma. 

Durante a disputa da Taça, todas as vezes que o Brasil ganhava, íamos de ônibus, meu irmão e eu, até o Anhangabaú para comprar a Gazeta Esportiva, que saía com radiofotos logo depois do jogo. Era o nosso replay. Depois dessa derrota final, não fomos buscar o jornal, ficamos em casa qual bola murcha. Sobrou como marco o Maracanã, enorme e vazio. 

No Mundial da Suíça, em 1954, perdemos para os húngaros num jogo em que a pancadaria foi até os vestiários. Nesse mesmo ano fui estudar em São José dos Campos e me afastei dos estádios. A TV, em branco e preto e tela pequena, recém-chegada ao Brasil, quebrava o galho. Em 1958, com Pelé aos 17 anos, ganhamos finalmente nossa Copa na Suécia. Que time maravilhoso!

As telecomunicações e, sobretudo, o avião a jato transformaram o futebol. Antes ele se dava no triângulo Minas-Rio-São Paulo. No plano nacional apareceram times adversários em todos os estados. A televisão em alta definição transformou o futebol, assim como os outros esportes. Se nos estádios reuníamos dezenas de milhares de espectadores, com a televisão tínhamos dezenas de milhões. Os jogos internacionais se multiplicaram, e o talento do jogador brasileiro tornou-se commodity cobiçada em todo o mundo. O futebol passou a ser negociado em milhões de dólares. Os jogadores viraram vedetes, com salários astronômicos, roupa da moda, cabelo tingido, jatinhos e Ferraris. Sumiram os jogadores de vida modesta, de terno, gravata e cabelo “glostorado”. Entraram em campo os jogadores milionários, propriedade de capitalistas. A camisa que vestem lhes é quase sempre indiferente. Os uniformes tornaram-se painéis onde cada centímetro quadrado vale ouro. Trocam de clubes e de países. 

O futebol tornou-se apenas questão de vencer. Os atletas são bem-preparados para correr, tomar e dar porradas durante 90 minutos. Se o jogo for feio, pouco importa. Se a retranca faz ganhar, que venha a retranca.

Acho que entraram novos costumes e eu saí pela porta dos fundos. Para mim o espetáculo acabou. Não vou ao estádio nem para assistir a um supershow com direito a telão. Já vi Caetano em um teatro de arena cantando logo ali. Da mesma forma, não me atrai o show do esporte e seus patrocínios milionários. No fim, Teatro de Arena e Vila Belmiro se assemelhavam.

Hoje, se passo diante de um rádio ou TV no momento de um gol, o grito do locutor e o som da torcida deixam meu cabelo arrepiado, a garganta presa e os olhos úmidos. Reflexos condicionados. As sensações esquecidas e empoeiradas aguardam no escuro, quietas, um sonho ou um grito que as trarão de volta à realidade. Apesar de tudo, o futebol ainda vive dentro de mim. Valeu!

3 comentários

  1. Caro Adolfo: Seu depoimento está ótimo e divertido !!!
    Como sou velhinho, aos 17 anos vi o horrível empate de dois a dois da seleção brasileira, toda de São Paulo, com a Suiça (toda vermelhinha) no Pacaembu. Depois. no Maraca, assisti 7 a 1 contra Suécia e 6 a 1 contra Espanha com Bigode dando butinadas desnecessárias (sem ser expulso), Zizinho botando toureiros na roda, mais Ademir e Jair nos divertindo. Mas do desastre final contra Uruguai, mesmo após nosso primeiro gol de Friaça, fui poupado por não conseguir ingresso. Mas, chorei, como todo mundo mais…. Como futebolista idoso não concordo quando dizem que nosso futebol piorou: o mundo todo aprendeu jogar, até a Boliíia…. E se joga como atletas em altíssima velocidade. Antes era em câmera lenta.

    1. Éder obrigado pelo comentário concordo que a velocidade mudou mas o jogou ficou mais violento e o dinheiro impresso nos uniformes é alguma coisa de revoltante esse esporte virou mercadoria de capitalistas que compram e vendem atletas. Mas no mais tanto eu quanto você amamos esse esporte ainda hoje grande abraço do colega e amigo Adolfo

  2. Não entendo absolutamente nada de futebol, mas lembro do meu pai contar da multidão que saiu do estádio e de que não ouvia nenhum som, nenhum…um silêncio pesado e absoluto. Deve ter sido realmente um momento e tanto….

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