Feliz aniversário!
por Eder Quintão

Oi garotão:

“Tu tá ficando véio hoje?.”  Sei que pretendes chegar aonde estou. Vais precisar de muitas pílulas geradas por consultas médicas. Isso sai caro; não sei se compensa! Bobagem Nestor. Não se afronte. Isso é passageiro. Não há mal que sempre dure. Amanhã acordarás sentindo facilmente que teu aniversário foi coisa do passado, tão remoto que logo estará olvidado. Conforme teu estado mental é possível esquecê-lo em poucas horas, ou mesmo minutos, a não ser que a esposa megera lembre-se e teime em acender velinhas para o bolo do evento. O objetivo dela é um só, como o de todas esposas: atestar que tu estás irremediavelmente mais idoso e não tem retorno. Sadismo ligado ao gênero ou só intuição feminina?

Velhice tem vantagem ímpar: embora demore para passar, apoquentando-nos permanentemente visto que jamais nos abandona, permite que apenas nós mesmos a abandonemos um dia. O problema não é que ela perdure, é a juventude que não dura! Os meus 66, diferentes dos seus, fazem tanto tempo que não me recordo mais deles. Diria: “aqui jazem meus 66 anos; repousem em paz”.

Outro dia queixava-me caminhando pela casa, sempre lentamente mas ainda sem bengalas, que me doíam as juntas, que estava obstipado há sete dias, isto é, sem ir ao banheiro, a despeito de doses duplas dos melhores laxantes receitados por meu experiente vizinho, que não é médico, claro – fosse um,  não daria, cobraria pela receita – bem-sucedido em movimentar seus intestinos, porém não financeiramente, sabendo que seu carro está quebrado há dias e ele não manda consertar enquanto não recebe o magro salário de aposentado da prefeitura, mas de intestinos vai bem, obrigado, naturalmente pontuais, sempre obedientes às ordens matinais enquanto lê o jornal inteiro sem perder uma linha sequer. É meramente por causa dos intestinos que ele é um sujeito bem informado: fala em detalhes de política, futebol, do tempo e até de moda feminina…. Dá até inveja, mas, não o julgo feliz: tem uma mulher rabugenta que se vangloria de ter intestino pontual e, por isso mesmo, não lê jornal.

Com as juntas neste estado não conseguiria chutar a bola com meu neto, ainda mais agravado pelas hemorroidas que saem para fora a qualquer esforço maior, esforço este desaconselhado por meu cardiologista para evitar dor de peito, uma angina diagnosticada num tal eletrocardiograma, à qual adiciono a erisipela por causa das malditas varizes que me incham a perna esquerda. Meu compreensivo neto que tanto adoro – tão pequeno e tão sábio – retrucou-me ao me ouvir resmungando as lamúrias habituais: “Vô: teu pobrema é que tu viveu dimais vô, viveu dimais da conta”… Compreendi que isto só traduzia seu mau humor por meu hábito de corrigi-lo sempre que produz tais afrontas, não a mim, mas à nossa língua; mas neto eu perdoo pois é para isso mesmo que existe: ser incondicionalmente amado.

Por causa desses meus achaques consulto às vezes um médico muito competente, aliás, pelo que me cobra, competentíssimo, mas tem pelo menos um imperdoável defeito: quer curar todas minhas doenças ao mesmo tempo e não o doente! Essa é uma diferença crucial. Exige que eu opere a hemorroida, me ameaça colocar uns tubinhos nas artérias do coração, que chama de “stents”, e que também eu opere as varizes para me livrar da erisipela, mas vaticina claramente que continuarei com dores nas juntas para as quais não haveria remédio eficaz, mas há, segundo meu confiável farmacêutico. Ora, eu ainda raciocínio que livre da hemorroida, da erisipela e da angina, sobrará ainda a dor nas juntas que deve se tornar particularmente severa, por ficar sozinha, órfã, então única perceptível a meus sentidos, incômodo que meu corpo fatigado teria que carregar e, naturalmente, sofreria mais por ter que dar muito mais atenção especial a ela: a artrite. Desaparecerão todos os outros incômodos que, de uma forma ou de outra, me distraem alternadamente: nunca me recordo de ter sofrido deles todos ao mesmo tempo: é sempre um ou outro, intermitentemente, fora o das juntas, que é permanente. Enquanto trato de um achaque, o outro silencia como que respeitosamente. Com tal currículo sobram-me atualmente assuntos poupando-me de mal maior: a solidão. Sem eles não teria como responder aos amigos que rotineiramente indagam sobre minha saúde, aliás, fazem-no apenas sobre ela. Nada além disso meu intelecto atual poderia fornecer. A conversa se tornaria insípida à falta absoluta desse tema já que desprovida de qualquer outra qualificação que me incluísse entre os animais pensantes. Responder a eles só sobre as juntas seria também desabonador: perderia na competição com meus companheiros “poli-queixosos”, faria muito menos visitas à farmácia onde me detenho prazerosamente ouvindo calmamente as últimas novidades de meu amigo farmacêutico que, garanto, parece entender muito mais de gota, erisipela e hemorroidas do que meu médico, e que afirma categoricamente que a maioria que ele conhece que botou “stent”, bateu as botas… E ainda sempre me vende remédios com ótimos descontos e, acredite, jamais cobrou consulta este santo homem!  

Meu médico tem ainda outros defeitos: é excessivamente curioso. Faz perguntas extravagantes, até indesejáveis. Outro dia perguntou-me se eu bebia álcool. Claro, respondi que nunca: em minha casa há whisky suficiente para todas as noites. Mas, seu maior defeito é o de me prescrever remédios para problemas que não me afligem, pois deles nada sinto. Por exemplo, não sinto estarem altos no meu sangue o colesterol, açúcar, ácido úrico, nem a pressão arterial, mas ele, não obstante, faz questão de tratar cada um deles e, pior, com um ou mais remédios para cada alteração. Medicado para os males irrelevantes que não sinto tornei-me um incômodo maior para os amigos completamente desinteressados em indagar sobre assuntos como a altura do meu colesterol. Para eles doenças não são coisas abstratas, são as palpáveis que nos fazem sofrer, achaques visíveis, dignos de comiseração. Quando eu era jovem o pires de café servia para conter o açúcar derramado da xícara; hoje, está cheio de pílulas desses remédios. Contei: são seis de manhã, duas no almoço e quatro ao deitar. Um disparate. Quando jovem tudo era resolvido só com uma, verde, cheirosa, chamada pastilha Valda e ocasionalmente um comprimido de vermífugo.      

Não me recordo mais o que fazia naquele tempo em que completei 66 como você. Aos 86 nem me recordo mais que nasci. Dizia o filósofo: penso, logo existo. E o que devo dizer já que não mais penso? Deixei de existir? Estaria errado o filósofo? Alzheimer, o responsável, tem, portanto, incontestes vantagens: esquece-se da existência, o que faz o fim mais do que previsível, suportável, como um apagar de luz de vela que se extingue apenas quando a vela acaba, o que é bem diferente do sopro que você dá nas de aniversário. Sofrimento é viver sempre com saúde perfeita pois o fim, sem demência senil, é imprevisível: morreria atropelado ou assaltado? Um câncer súbito? Falência de múltiplos órgãos? Qual deles vai falir primeiro quando todos estão bem afinados trabalhando harmonicamente por tantas décadas? Pneumonia consequente a gripe? Impossível: tomo vacina anualmente e não moro em área de dengue. Alzheimer e demência senil são dádivas que jamais deveriam ser tratadas; bênçãos, passes mágicos para o mundo sem retorno. Permitem fim suave em que o cérebro esquece que tem corpo, amenizando o sofrimento deste. Tragédia é o corpo sofrer antes do derretimento cerebral. Nosso cérebro não sente nada, só se apaga rápido ou devagar, indiferente para o doente, sofrido só para a família, mas a essas alturas para que serve a família? Torce a favor de nosso cérebro se desmanchar o mais rápido e, de preferência, ao menor custo possível para não importunar o tamanho da herança deixada. Graças ao Alzheimer eu jamais registrei qualquer gol que tivesse feito quando jogava futebol, se é que fiz algum. Aliás, nem mesmo sei se joguei futebol. Pergunto a você: eu joguei?  Semana passada esqueci meu nome. Mas isto não faz qualquer diferença para minha vida futura ou passada. Todos os amigos também esqueceram o meu, e nisto creio que houve reciprocidade de minha parte: esqueci o deles bem antes deles o fazerem. Entretanto, fazia diferença quando gritavam meu nome durante o jogo embora não entendesse com quem ou porque eles estavam gritando. Em tempo: não preciso ainda de aparelho auditivo.

Há pessoas que dizem ter vivido vidas passadas. Eu não sei porque: tendo esquecido a presente, não poderia em hipótese alguma rememorar a passada, considerando que há uma clara hierarquia em minha memória minguante. Um amigo disse-me que na vida passada era um cogumelo (acho que foi comido por alguém). Falo dele depois…. Ou não devo falar por causa da censura de gênero que nos é imposta nos dias atuais?

Outro dia vi uma minhoca viva no jardim. Aí consegui, mesmo que por breve instante, lembrar-me que tinha uma, tão mole como aquela, pior, inerte. Hoje olhei bem para minhas partes baixas e vi que era diferente da minhoca que vi ontem: esta, ainda se contorcia. A minha nem se move mais, a não ser quando erguida por minhas mãos trêmulas me coloco à bacia do banheiro para passar as águas. Talvez eu nunca a tenha usado, e se usei nem me recordo, de tão esquecido que estou, qual tenha sido sua finalidade. Sei que a tenho pois a sinto pendurada ao meu corpo, mas sem serventia, exceto a de deixar deitar as águas que, quando passam, são frágeis, e desrespeitosas para com minha esmorecida vontade. Mas meu senso de higiene ainda permanece alerta (é o pouco que me resta): não deixo que as últimas gotas respinguem sobre meus sapatos pois tenho o extremo cuidado de afastar os pés um do outro, suficientemente para manter minha base de sustentação sem esparramar ao chão todo meu frágil corpo inteiro. Minha passagem das águas é demorada, tanto quanto o tempo que levo para mover até o lavatório o corpo que carrega minha bexiga, mas é bem organizada: apoio a fronte na parede à frente e assim me aproximo bastante da bacia o que garante o sucesso do ato enquanto seguro o apêndice “mijante” com ambas as mãos, embora já tenha até passado vexame. Outro dia, no clube, um jovem aproximou-se e visivelmente apreensivo com minha posição perguntou: “meu senhor, está se sentindo bem”?  É bem verdade, confesso, que agora é muito diferente da infância quando disputava com meus primos quem conseguia mijar mais longe. Porém nesta tarefa fisiológica considero-me um felizardo: só levanto três vezes à noite e sei que muitos, até menos velhos, sendo obrigados a verter inúmeras vezes, dormem muito mal. Incorporei este hábito galhardamente.

O cardiologista enviou-me a um urologista. Um sujeito de maus bofes que queria ver como estava a passagem da urina à custa de enfiar o dedo em meu reto. Argumentei solidamente, angustiado, que se eu tivesse câncer de próstata preferia morrer dele do que passar pelo vexame que ele queria me impor. Fui embora sem me submeter a esse ultraje, mas do pagamento do honorário não consegui escapar. Por acaso alguém sai impune de consultório médico?

No passado distante contava o número de atividades sexuais bem-sucedidas por noite. Depois veio a fase de maturidade, aquela do elogio aos vinhos franceses bebericados nos jantares tardios com os amigos, noite a dentro, fase que antecedeu a atual, a das noites tranquilas confortado por serem mínimos os esvaziamentos de bexiga.  

Por falar em dormir, meu sono é pesado como pedra, mas não para minha esposa que reclama continuamente de meus roncos assíduos, embora reconheço, um defeito de memória seria mais útil a ela do que a mim para não se queixar tão injustamente na manhã seguinte. Em tempo: a audição de minha esposa é, infelizmente, perfeita para seus oitenta anos. E a saúde dela? Um primor resultante de conhecer todos os médicos indicados por suas inúmeras amigas.  A notória longevidade feminina não é consequência de um processo biológico natural, parido pela evolução, mas artificial, provido pelo zelo da ciência moderna.

Satisfeito com minha deliciosa biografia? Engana-se. Meu médico proibiu-me viagra alegando que associado ao remédio indispensável para as coronárias eu poderia ter uma abrupta queda da pressão e passar desta para outra pior.  Um idiota este meu médico, concluo por fim: sem viagra vive-se tão mal que é impossível imaginar cenário pior. Sem este comprimido salvador que diferença faz continuar vivendo? Se de um lado há hemorroida, artrite, angina, erisipela, varizes, compensa-se tudo eficiente e prazerosamente com o comprimidinho azul. Foi o que eu disse ao caixa muito simpático na fila de idosos do banco onde vou diariamente a ver meu saldo, o que faço com gosto, pelo longo bate-papo com ele apesar duns garotões mal-educados que na fila ao lado reclamam da demora no atendimento. Esta juventude de hoje é mesmo insuportável. Minha filha exige que eu veja a conta bancária pelo computador mas desistiu face à minha incapacidade de fazer o tal de “mouse” mostrar o dinheiro na tela. De meu lado insisto que o “mouse” é inútil e que prefiro lidar com a tela passando o dedo sobre ela, porém estranhamente ela não reconhece minhas digitais.    

Nestor: se minha mulher não me deixar esquecer, passo à noite para vê-lo assoprar as velinhas. Se eu não aparecer você saberá de antemão a causa: a culpa é dela.

Feliz aniversário

Do Juca

PS: não podendo mais usá-las embrulhei bem quatro caixinhas de viagra que disfarçadamente levarei a V. sem que sua esposa perceba, mas que deixarão sua exuberante secretária, aquela mocinha, a tal Lavínia de quem tanto você se vangloria, muito mais animada e grata.

2 comentários

    1. Obrigado Itamar:
      A origem do conto é que é divertida. Um amigo que faz esporte comigo (jogamos futebol) e é muito divertido enviou a todos jogadores do time uma mensagem dando os parabéns a si próprio. Disse a ele que isto receberia uma resposta à altura. Escrevi então esta história completamente surreal para me divertir com ele. Claro que ele adorou, creio porque corresponde ao notável humor dele.

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