Fé,
por Eder Quintão

Hoje é dia de Nossa Senhora de Aparecida, como de costume devidamente salientado em praticamente toda a mídia, conscientemente idolatrado pelos muitos crentes que ousam rumar estrada afora a seu encontro na cidade do mesmo nome, mas muito mais louvado – o dia – talvez com a mesma consciência devotada à Santa, pela imensa maioria carente de ócio e à qual é concedido esse bem-vindo, mais do que divino, feriado prolongado em que se descansam os ossos fatigados e que até permite produzir conjecturas fantasiadas de filosóficas.

E as cenas se repetem ano após ano. Vemos pessoas arrastando-se de joelhos pela rampa até o santuário, ou andando de quatro, percorrem-na em cadeiras-de-rodas, ou apoiadas em muletas, até levando infantes sobre os ombros, empunhando velas e alguns objetos não identificados, assemelhados a partes do corpo humano, e cópias da imagem, cartazes com dizeres religiosos de reconhecimento às graças recebidas e prometidas (asseguram eles que serão concedidas), e toda sorte de parafernália dita sacra, felizmente disponível comercialmente a custo bastante acessível, talvez por ser comercializado em grande quantidade. A expressão comum é “pagar promessa”, mas nunca percebo de quem ou para quem: se do crédulo que a Ela prometera algo, ou Dela a quem ele pediu (ou exigiu?) retribuição. Os comentaristas na mídia não se esquecem de enaltecer esse “espírito religioso”, essa marca inconfundível de devoção da mais profunda sensibilidade cristã, embora, curiosamente, ninguém ali fala, menciona, nem mesmo disfarçadamente sugere ser manifestação fundamentada na teologia original em honra a Jesus Cristo, divindade máxima da religião. É o gênero feminino que acaba sempre dominando. Desse santuário no vale do Paraíba do Sul o Cristo foi sutilmente suprimido, embora os divulgadores não se esqueçam de enfatizar que o ato peregrino é de fervor cristão. Concordo que deva haver mais empatia no diálogo com uma imagem materna acolhedora, de quem se espera benevolência, do que com um Deus exigente, figura paterna, mais atento, severo, apto a punir transgressões. 

Requer de minha parte inesgotável imaginação entender por que ele se  sente obrigado a ir ao encontro da estátua enegrecida por três séculos, resistente à pulverização do iconoclasta que a reduziu a estilhaços (fraturou-se o objeto, mas a alma, por óbvio, teria ficado incólume), reconstituída pela dedicada restauradora, quase anônima, que a refez sem mácula (isto sim, milagre!), para somente assim conferir seus poderes supranaturais (se despedaçada, indaga-se: eles pereceriam?), o que implica num sincretismo extraordinário do físico com o espiritual, do material com o fictício, do real com o suposto, mas talvez ainda mais da realidade com o sonho na ótica do peregrino. Demanda ter que fazer face ao Objeto (impossível tocá-la quando sabemos devidamente protegida contra a sanha de novos iconoclastas imprudentes) para comunicação efetiva com a Deusa existente, embora a peça carregue a Divindade apenas em abstrato. Ora, divindade que se preza – pela veneração que a ela de dedica – deveria saber de antemão as ansiedades e necessidades de seus crentes (ou clientes?), sem exigir premência de aproximação material de tal ordem que, para atingir o benefício, demanda ser indispensável manter distância mínima, talvez medida em centímetros, usualmente poucos metros, porém, aparentemente intolerável se em quilômetros. Para encurtar a distância, tal como à Meca, há que se fazer a peregrinação para dar mostras claras, exibir-se, patentear ao mundo ao redor o testemunho de seu pacto com a Divindade como que clamando “paguei, nada mais devo”, ou então “peço, por que bem mereço”, ou simplesmente pelo desejo de clamar por piedade sem retribuição, nunca se sabe ao certo. Talvez a santa, devido à idade avançada, não ouça bem, daí a exigência de que o pedido seja presencial. No caso o espírito soa bem mais material do que abstrato.  

Procurei avidamente a sinonímia da palavra fé tão repetida hoje no dia de Nossa Senhora de Aparecida pela mídia impressa e televisiva. Encontrei credo, credulidade, crença, convicção, além de conjunto de dogmas religiosos (religião), mais ainda, li confiança absoluta em algo, como segurança, crédito, esperança, certeza, etc., como também comprovação de um fato, demonstração, garantia, evidência, testemunho, prova, verificação, e muitos outros atributos esclarecedores. Insistente, busquei mais luzes no dicionário Houaiss da língua portuguesa.  Além das outras explicações, como “fé conjugal, pública, de ofício”, etc., que não acrescentaram à minha compreensão dentro da lista de sinônimos mencionados. Anotei as que do ponto de vista comportamental, além da letra fria dos dicionários, esclarecessem sobre o que tenho testemunhado ao longo dos anos desse dia da mais arraigada religiosidade. Acresceu o respeitado léxico ser a fé a “primeira das três virtudes teologais no catolicismo”, “confiança absoluta”, “comprovação de algum fato”, “compromisso assumido de ser fiel à palavra dada, de cumprir exatamente o que se prometeu”, “crença religiosa sem fundamento em argumentos racionais, embora eventualmente alcançando verdades comparáveis com aquelas obtidas por meio da razão”: as aspas são todas minhas. Achei essa última observação (ou definição?), mais próxima da realidade que tenho testemunhado, mas nem por isso, capaz de passar incólume à necessidade da merecida crítica, pelo menos servindo essa à inutilidade de produzir essa crônica. Primeiro: …. “No catolicismo”…: ressalva providencial do dicionarista visto que se trata de reconhecer fé cindida: os da vertente romana – aparentemente em queda constante no solo pátrio – que a adoram, enquanto os da oposição evangélica – em crescimento vertiginoso – que a rotulam “marianismo” e a ela objetam com veemência, o que em princípio gera confusão sobre em qual fatia da cristandade se encontra a verdade já que esta deveria ser apenas uma. Segue-se a palavra-chave “eventualmente”.  Por quê “eventual” o que deveria ser – pela graça do Ser Supremo – permanente, obrigatório, impreterível, essencial? Não deveria a Deusa – louvada em outros santuários mundo afora – conferir indistintamente a todos Seus “filhos” o benefício do “milagre” em toda e qualquer circunstância, a qualquer tempo, local, distância e em sua plenitude? Por quê limitá-lo apenas à ressurreição de Seu Filho, sem estendê-lo automaticamente difusamente aos milhões de devotos, e tantos e tantos outros Seus “filhos”?  Por quê haveria de conferi-lo apenas aos penitentes que se perfilam a Ela, e não a todos mais, indistintamente, que se mantém recolhidos a seus lares? E a aqueles que jamais poderão ir a seu encontro? E mesmo por quê ter que solicitar “Sua graça”? Não deveria ser ela difusa, completamente gratuita, misericordiosa, permanentemente ofertada, entregue, integral e irrestritamente dispensando retribuição? Por quê excluir-me? Só por quê cometo a desfaçatez de ser incrédulo? Ora, não poderia merecer o benefício da dúvida por sê-lo por mera humana ingenuidade a que tenho direito, ou por acidental desvio de comportamento, passível – se não do perdão Dela – pelo menos de Sua compreensão e generosidade? Suponho que possa haver crédulos que nunca a recebem ou jamais a receberão – e tenho o direito, até o dever de supor – já que embora sejam multidões que clamam contundentemente terem obtido a regalia de “Suas” curas e “Graças” milagrosas, embora nem em decorrência têm ficado despovoados os cemitérios que continuam recebendo nossos corpos devidamente despachados sob a terra, lamentavelmente ignorados pelos mais eficientes “milagres” Dela recebidos. Que ousadia, dirão muitos, se não todos! Que destemor fazer tais indagações! Como é possível a um simples, inepto mortal, diria ainda, vil, ousar interpelar os desígnios do Supremo, e até da Suprema?

Por cauteloso, mesmo que não abandonando a incredulidade, não ousarei continuar, embora resista remover os impropérios já escritos. Apenas indago: por quê resisto? Respondo: devo ao incauto leitor alguma explicação e aqui acrescento justificar minhas outras aspas: “por meio da razão”. E de onde “ressuscito” essa “razão”? Respondo: do fundo de nossa medula, de algum canto ou dobra de incerta circunvolução cerebral, gerada por ocasional DNA que, sujeito a mutações tornou-nos Homo sapiens sapiens, irremediavelmentetransmitidas, mesmo que a contragosto por nossos pais, se devotos da Santa de Aparecida e de suas irmãs gêmeas em Fátima, Lourdes, Luján, mais as muitas da Áustria, Bélgica, Bolívia, Bósnia, Colômbia, até os fins do alfabeto geográfico terminando na Polônia e Portugal. Embutida em resolutos neurônios está a semente do porquê. É um porquê persecutório, pois não nos abandona, visto que nos impele, nos impulsiona em direção ao indecifrável, até um perigoso desconhecido, permanentemente insatisfeitos, e que não costuma deixar respostas em seu rastro, afora mais porquês. Somos escravos deles e prosseguimos em persegui-los, às vezes à custa de descaminhos, medidas incertas ou inapropriadas, e até erros – concebíveis uns; crassos, talvez muitos – e tímida ou ousadamente teimamos mantê-los, deplorando distanciar-nos deles. Inquietamo-nos se os formulamos inadequadamente, mas alegramo-nos infinitamente quando, como e se achamos que os respondemos, e ao fazê-lo repousamos nossas mentes na alegre plenitude de havermos tentado sem jamais nos aquietarmos. Assim se justificam os que buscam incessantemente conhecer. Chamam-nos cientistas, quando dedicados a essa causa, mas jamais “crédulos” ou “devotos”, mais ainda, nunca imbuídos de “fé” desprovida de “razão”. 

Devo-lhes ainda a explicação para a “falta de fundamentos” (as outras aspas). No mundo do conhecimento – prefiro esse termo ao sinônimo “ciência” que soa um tanto presunçoso – tudo que descobrimos fazemo-lo medindo. A mensuração é o que nos permite definir a descoberta por seu tamanho, importância, originalidade e eventualmente, utilidade e, acima de tudo, credibilidade. Essa última característica é indispensável, embora possa ser até inútil, daí o condicional. Os exemplos de todas essas condições são incontáveis e ao listar alguns aleatoriamente espero não cometer a injustiça de negligenciar a vastidão deles, muito mais conhecidos, até populares. Ignoramos a utilidade de saber o que determina a gravidade, a atração entre os corpos, apenas sentimos que estamos presos por ela à Terra e conseguimos defini-la matematicamente, ou seja, nós a medimos. Os homens, esses bichos da espécie Homo sapiens sapiens com inegável pendor matemático, há muito já sabiam contar as horas dos dias, a duração das estações do ano, e usavam essas mensurações para plantarem e saciarem a fome embora achando que a terra era o centro do sistema solar – tanto faz se ela gira em torno do sol, ou este ao redor dela, e que essa mensuração seja hoje precisamente conhecida – tal conhecimento é inútil à vida humana exceto pela satisfação conferida a nossa imensa, incurável, curiosidade. É igualmente desnecessária à nossa existência medirmos também o tamanho do sol, a distância dele à terra, e calcularmos muito bem em quanto bilhões de anos ele se apagará, um conhecimento supérfluo que apenas sinaliza que nossa “eternidade” não é eterna. E de que nos interessa medir o tempo de existência do universo se não para sabermos que teve início, se expande, encolherá e se extinguirá após exatos bilhões de anos? Isso em nada muda nossa existência, exceto para nos satisfazer, comprovando como sempre, que somos animais inquietos, irremediavelmente curiosos. Por isso aprendemos o tamanho de uma bactéria, sua quantidade, o que produz e quanto nos afeta, e se essencial para que a usemos em nosso benefício. Descobrir que fungos produzem penicilina, bactérias fabricam incontáveis medicamentos, que os genes podem ser quantitativamente manipulados propiciando-nos alimentos resistentes aos parasitas que os infestam, como e quanto, e ainda quanta energia solar e água são requeridos para melhor crescer o grão de trigo do pão que comemos, são apenas uns poucos casos de imensa utilidade, mas exemplos citados são ínfimos como uns poucos grãos de areia numa extensa praia de casos concretos que permitem vivermos civilizadamente, com muito mais conforto e proteção do que viviam nossos avós, sem falar dos antepassados. Basta estendermos nossa imaginação um só milênio para sentirmos em toda profundidade tudo o que criamos para nosso benefício, por nossos próprios dons e capacidades, sem apelo a entes supremos dento ou fora de altares.

É bem verdade que em ciência e fé ocorrem imprevistos. Talvez seja esse o único ponto que sustentam em comum, crentes e incrédulos. Vivemos circundados por acidentes como se a imprevisibilidade estivesse sempre à nossa espreita; se benéfica, até os céticos rotulam-na como milagres, mas para os homens de ciência esses imprevistos não são conduzidos por mãos etéreas e muito do que se descobre é até alheio a nossas intenções originais. Alexander Fleming foi aquinhoado pelo aleatório crescimento de fungos que destruíram suas bactérias no meio de cultura, porém, enquanto a maioria dos mortais descartaria as placas “sujas” da cultura, sua mente alerta o fez indagar o que produziam aqueles fungos contaminantes resultando desta perspicácia a descoberta dos antibióticos. O abade Gregor Mendel descobriu o fundamento da hereditariedade, e ficou “milagrosamente” esquecido por algumas décadas após a morte. Charles Darwin e Alfred Russel Wallace chegaram simultaneamente às mesmas conclusões, mas “o milagre” parece fabricado só pelo primeiro; mesmo assim há uns cristãos empedernidos que rejeitam ambos, embora se mantenham irredutivelmente crédulos quanto aos perpetrados em Aparecida. Wilhelm Conrad Röntgen descobriu os Raios X e Marie Curie o rádio por causa de suas mentes atentas; estas sim eram milagres. Diz-se que Isaac Newton fez a equação da gravidade após o impacto de uma maçã sobre sua cabeça; jamais teria criado lei alguma se houvesse coqueiros na Inglaterra, a não ser que mais um “milagre” ocorresse na queda do coco desviando-o de sua incauta cabeça a divagar em pensamentos tão abstratos. E a figura mais contemporânea e popular que foi Albert Einstein exemplifica como nenhuma outra a premência que ele sentia de que uma crítica experiência cósmica pudesse comprovar aquilo que desenvolveu teoricamente e que não conseguiria provar a não ser que a submetesse a teste: este ocorreu para atestar mais um e majestoso “milagre” da criatividade do gênero Homo

Sendo um Homo sapiens curiosus deleita-me lembrar que há vários ramos de conhecimento que usam métodos de medida aparentemente insólitos, mas experiências várias mostraram ser bastante sensíveis (desde que adequadamente utilizados). Por exemplo, mede-se a memória de um rato quando se investiga medicamentos que nela atuam, mensuramos a intensidade da depressão, quais e quanto das medicações esta requer, o tamanho da inteligência animal, o como somos persuadidos por uma propaganda, a quantidade de disposição que temos para o cometimento de alguma falcatrua, até mesmo sendo admitidos como socialmente honestos, o grau de dominância ou de sujeição passiva de um animal, inclusive nós mesmos, o que nos motiva quando adquirimos quaisquer bens, o que é avaliado por procedimentos de medida pelos economistas. Tais conhecimentos estão embutidos em ramos de múltiplas atividades, como psicologia, antropologia, sociologia e afins: chamam-nas ciências humanas, o que nos confunde como se as chamadas ciências exatas não fossem humanas e as humanas não fossem exatas, um disparate!

Tudo isso é original e crucial, requerendo ser quantificado e após essa exígua – mas nunca supérflua – divagação pela ciência transporto-me de volta à fé em Nossa Senhora Aparecida. O benefício da dúvida está arraigado na ciência e no estamento jurídico. Podemos conjecturar que esse hábito da peregrinação a Aparecida se mantenha por ser prazeroso ou por conferir algum benefício de pleno reconhecimento geral. Difícil imaginar que, se tais vantagens não existissem, a motivação de multidões se perpetuasse há tantos anos; o hábito deveria ter se extinguido naturalmente, como ocorre no processo da evolução das espécies bem descrito por Charles Darwin, pelo menos porque os pais teriam também transmitido a seus descendentes a inutilidade do costume. Para enfatizar este ponto lembro que é notório que o desejo de adquirir um produto se extingue com o tempo se provado prescindível mesmo que sob o bombardeio de constante propaganda (no caso, pregação). Concluímos então que esse caminhar deve ser pelo menos aprazível, benéfico ou ambos. Se não raciocinarmos assim seremos obrigados a concluir que a multidão se comportaria como gado autômato passando o portão apenas por vê-lo aberto. Horripilante esse raciocínio que implica em rotulá-la de irremediavelmente estulta, não pertencente ao gênero Homo sapiens. Recuso-me a fazê-lo pelo fato deste mesmo Homo ter saído das cavernas do passado, descoberto o fogo, e produzindo instrumentos cada vez mais sofisticados propiciando o imenso conforto de nossos dias. Prefiro imaginar outra alternativa de cunho comportamental ao qual talvez os sociólogos me deem aval. Mesmo que o senso comum conclua para cada peregrino a noção de inutilidade na peregrinação, isentar-se dela deve implicar em sentir um “não pertencimento” àquela sociedade, uma forma de auto-exclusão – que provavelmente justifica o crescimento dos evangélicos que a ela se opõem – de antagonismo explícito ao rebanho, oposição ao costume tribal gerado ao longo dos séculos e que nos une por laços afetivos tão duradouros. Vejo que as andorinhas e muitos outros pássaros voam em bandos unidos em perfeita sincronia; algo as une socialmente que não parece ser a liderança exercida por alguma delas e que precisamos investigar como comportamento idêntico, simultâneo, talvez inato. Afinal, tradição e família se anelam, tanto assim que há até grupelho que conjuga essas duas condições à de “propriedade”, embora seja felizmente ignorado pela vasta maioria que professa a mesma fé. Afinal, o pertencimento a uma tribo não implica na necessidade de menosprezarmos as outras ou até desejarmos eliminá-las.

Não prosseguindo nessas conjecturas sociológicas sobre as quais sou ingênuo, sem timidez mantenho a incredulidade e a necessidade de comprovar a veracidade das graças. Ela não exclui que um ou outro episódio possa ocorrer perturbando, apenas aparentemente, a confiança no bom senso comum. Há muitos doentes que se curam espontaneamente, com ou sem ajuda médica, filhos e até esponsais pródigos por retornarem aos lares, negócios mal geridos que circunstancialmente se recuperam e muito mais fatos com ou sem promessas à Santa, independentemente da força persuasiva dos suplicantes. Mas as obras do acaso são interceptadas pelos mesmos procedimentos usados na mensuração de ciência os quais consistem em aferi-las por medidas estatísticas simples de uso corriqueiro. A mensuração dos resultados dos milagres poderia até ser submetida à mais rigorosa prova matemática capaz de imprimir a eles grau de inquestionável veracidade. Os procedimentos são vários e corriqueiros. Há até um deles desenvolvido por um reverendo religioso há quase três séculos chamado Thomas Bayes. Ao propor empregá-lo deixaríamos os religiosos menos desconfiados e mais satisfeitos pois seriam medidas por meios não pagãos; não haveria a princípio tendenciosidade e seus pares da fé não o repudiariam.

Isso se faz necessário porque a lógica do cientista e do religioso difere drasticamente. Se o primeiro manifestar incredulidade em um encontro pastoral será rapidamente expulso (no passado distante, devidamente incinerado). Se o segundo defender a certeza do milagre e o poder da fé num congresso científico não lhe cassarão a voz, mas a priori considerá-lo-ão surrealista na melhor das hipóteses, ou insano na pior delas.

Escapa à minha imaginação por que os “milagres” nunca foram submetidos a alguma mensuração que os comprove pelos mesmos métodos usados em avaliar todos nossos outros conhecimentos hodiernos. Nem precisaria ela pautar-se pelo exagero da estrita metodologia científica, embora sempre mais convincente que assim se faça. Afinal, repórteres de jornais que primam por publicar escândalos, falsos e verdadeiros, limitam-se a apresentar esparsos depoimentos aleatórios dos crentes peregrinos, mas, falta-lhes curiosidade para esmiuçá-los detidamente, ou se abstêm de fazê-lo por preguiça, ou algum preconceito que desconhecemos? Acho que não pois são ousados demais quando buscam seus objetivos. Tampouco jamais soube que sociólogos, psicólogos, antropólogos e outros afins tenham se envolvido no tema, embora se aprofundem em conhecer as práticas xamãs e dos orixás, quiçá porque sendo demasiado exóticas e periféricas em nossa sociedade chamem a atenção e atraiam mais curiosidade. Bastariam lápis e papel, talvez até um laptop, para anotar o testemunho do penitente, assegurar-se do que afiança em depoimento, registrar seu paradeiro, isso tudo sem lhe dizer o objetivo da “entrevista” para impedir qualquer parcialidade. Passados dias ou meses ir o investigador certificar-se de que a “graça” foi efetivamente alcançada, ou ainda que participara da peregrinação pelo fato de já tê-la obtido, para o que bastaria inquirir simultaneamente testemunhas mencionadas pelo entrevistado. Isso, com a devida cautela para que a validade da pesquisa não seja viciada por proporção elevada de abandono de confirmações ou excessivamente irrigada por fantasias, como aquelas dos que “veem” discos voadores, vozes de santos, imagens que choram ou sangram. São esses cuidados básicos inerentes aos preceitos da boa investigação. Não se justifica furtar-se em analisar essa manifestação da fé: se afirmativa atingiria retumbante prova de sua veracidade, angariaria multidões de novos aderentes, agora crendo pelo simples exercício da razão pura, própria de um animal pensante. Se negativa, provavelmente, não desviaria os crédulos de seus sentimentos arraigados por séculos de tradições e, assim, nenhum prejuízo acataria para o profícuo mercado turístico da penitência. Portanto, ninguém tem a perder e a verdade, tão incompreendida, tímida e carente, só tem a ganhar.                             

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