Fazei o bem não olhai a quem,
por Sergio Zlotnic

Esse post de Sergio Zlotnic foi publicado em 2017. Mas resolvemos republicar por uma razão: os comentários de Zlotnic sobre a repercussão do texto lá atrás. Simplesmente, você precisa ler.

1- Quando se faz o bem a alguém – um favor, um grande gesto fortuito, uma pequena gentileza ou uma grande doação, material, espiritual, financeira, de qualquer ordem, para retribuir algo recebido ou absolutamente à toa, por amor ou altruísmo, obrigação ou polidez, gastando $$$ ou tempo, tutano ou suor, com dedicação e parcimônia, capricho e consideração, de boa vontade ou a contragosto, salvando uma vida ou não, enfim –, o resultado será sempre uma pessoa grata, do lado de lá.

Que, então, diz: “OBRIGADO!”.

Todavia, como todo ser humano, no fundo, sabe de seu próprio egoísmo e idiossincrasia e, por consequência, é ciente de que, por mais que tenha feito, poderia sempre ter feito mais um pouco, como sabe de sua mesquinhez funda, mesmo que invisível aos outros, como sabe também de todas as desgraças que assolam o mundo inteiro, sabe da fome, da miséria, da perfídia, da violência, da injustiça, das falcatruas e das guerras, que tornam qualquer bom gesto fração demasiado ínfima de contribuição cósmica, receber o “OBRIGADO” com naturalidade é – sem exceção – insuportável.

Receber sem restrição qualquer agradecimento, por mais sincero que seja, gera sentimento de impostura pesado demais. Pois todo cidadão, pessoa física, sabe de seus pecados. Grandes ou pequenos. Sabe de suas vaidades, gordas ou magras. Sabe de suas velhacarias. Sabe que levantou a voz pra vizinha, por detalhe torpe, em Santos, num verão longínquo de outrora, por exemplo. Ou na Praia Grande, não vem ao caso.

Motivo pelo qual, depois do ato heroico, depois de salvar um sem número de desgraçados, nos filmes de aventura, o socorrista desaparece. Puf, sumiu!

Quando o flagelado, cuja dignidade foi restituída, se volta para agradecer, naquele momento preciso, o salvador evidentemente já não está mais lá – tendo evaporado no instante anterior; não sem antes certificar-se de que todas as garantias institucionais e legislativas foram recuperadas e devidamente restabelecidas de forma irreversível.

Depois de checar que a ordem reina absoluta, o herói se dissolve, sem deixar vestígios.

É assim aqui, alhures e acolá também. Não pode ser diferente em nenhum lugar.

Pois, a verdade maior é que o agradecimento devido é indevido. Paradoxo!

Donde, permanecer para receber louros vãos, onde quer que seja, é imodéstia indesculpável.

O “OBRIGADO” do frágil agradecido, ou de qualquer cristão, gera tamanha culpa que o sujeito ponderado, com razão, não quer e não pode carregar.

Caso aguardasse para escutar palavras recheadas de gratidão, o herói seria fulminado pelo abissal contraste entre a sua própria autoimagem e a visão que o desamparado faz dele.

A idealização que o socorrido faz do salvador é como uma capa divina que leva o herói a crescer artificialmente, acedendo ao Olimpo, por assim dizer.

2- Este mesmo estado de coisas se verifica em qualquer situação e circunstância, banal, corriqueira e cotidiana, ou excepcional, faraônica e helênica. Franciscana ou não. Tanto faz como tanto fez.

Quem dá algo e em troca ouve o “OBRIGADO” é obrigado a retrucar “de modo algum, obrigado a você; eu é que agradeço; não, obrigado eu; insisto, quem diz OBRIGADO sou eu. Não, não é, sou eu. Negativo, discordo; não foi nada; você teria feito o mesmo; não, não teria. Jamais teria”…

Inicia-se assim interminável discussão, jogo de empurra, “fique você com essa porra de OBRIGADO”.

3- Batata-quente, Cavalo de Troia. Ninguém quer agradecimentos enfiados nas vísceras, apodrecendo no âmago da alma, gerando mal-estar, náusea, sucos gástricos, vertigem, azia, enfermidades diversas. Não há solução.

“Enfie no cu a sua gratidão, seu filho da puta”, disse alguém, outro dia, com pavio curto, não vou citar nomes.

Não! Não se apoia aqui a falta de educação, de jeito nenhum. Entretanto, há que se reconhecer o sadismo daqueles que agradecem. É pedir muito?
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4- O mesmo ocorre quando dois amigos vão a um restaurante – e um deles resolve pagar a conta.

“De jeito nenhum; faço questão; o que é isso?? me dá aqui a merda dessa conta; larga isso; meto a mão na sua cara agora mesmo; viado é o seu pai…” – assim por diante e por aí vai.

As Secretarias de Segurança dos Municípios não divulgam, com receio de gerar pânico na cidade, porém, sabe-se, na estatística, a cena acima descrita é causa maior de homicídios dolosos.

Cuidado, portanto.

Melhor deixar o outro pagar – e, como vingança pelo desaforo, agradecer em seguida.

Fica a dica.
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5- Observação: o Teatro, sempre mais sábio, faz diferente. No solo sagrado do palco, um ator deseja “merda” ao outro. E é proibido agradecer.

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Texto: Sergio Zlotnic – janeiro 2010.

Comentários sobre a repercussão:

O autor do desenho que ilustra esse texto é o Tom Vieira. Um rapaz que ilumina a vida de todos, pois é iluminador de teatro e artista plástico [além de boa alma].

O texto brinca com a história da gratidão – por isso, houve quem reclamasse.

Eu fiquei incomodado, pois achava que poderiam não gostar – mas deveriam entender que a coisa toda era ironia. Então, eu respondi ali no site ‘defendendo’ o conto.

Acabei levando bronca de Tom – que disse que nunca é pra contestar as reações.

Lembrei disso tudo [não só pela presença de Tom no sábado], também porque Áurea comentou o quanto quem escreve deve estar aberto a críticas.

Lembrei ainda de Nelson Rodrigues que [não tendo ouvido a fala de Áurea], numa de suas estreias [muito vaiada antes mesmo do final], levantou-se de sua poltrona na plateia e gritou ‘BURROS’, pros espectadores que iam deixando o teatro e o espetáculo pelo meio.

Ainda com relação ao desenho de Tom [que eu acho genial], ele explicou na época que ‘desligar os aparelhos’ seria o gesto maior – que entretanto, não pode ser agradecido [pois o beneficiário da generosidade morreu].

Gostei tanto, mas tanto, da interpretação que ele fez do texto que, na postagem, de dois anos atrás, resolvi explicar isso – pelo que levei outra bronca: Tom diz que em arte não se explica…

Resumo, só levo bronca.

Viva ele.

E vivas a vocês.

SERGIO ZLOTNICPsicanalista, é Pós Doutor em Psicanálise pelo Instituto de Psicologia da USP. Pesquisador dos diálogos de Freud com os campos da arte. Colunista do Portal da SP Escola de Teatro. Pela Editora Hedra, lançou o livro de ficção Baleiazzzul, alusão ao atravessamento do processo psicanalítico. [email protected]

TOM VIEIRA Ilustrador; artista plástico; iluminador de Teatro. Pesquisador da fronteira entre a luz e a sombra. A imagem que ele constrói aqui, especialmente para o texto, remete a algo em suspensão – que não se sabe se vai ser ligado ou desligado. Chama-se “Nossatanásia”. Seria o gesto mais generoso possível – que todavia não pode ser agradecido: pois o contemplado morreu [foi morto] e não pode mais dizer OBRIGADO! Alguém desligou as máquinas?

A frase: “UTI é o avesso de um aborto” é o que parece estar em questão. Essa ideia nasce da última peça que Tom Vieira iluminou, chamada “Berenice Morre!”. A ligação UTI/aborto, aliás,está num conto aqui do fifties: “doem juntas” – metáfora que deu origem ao espetáculo teatral de 2016. Contato: [email protected]

3 comentários

  1. Caríssimo Sergio,
    Creio que não sou uma leitora que entende o mistério das entrelinhas em seus textos.
    Nao entendo o subentendido. Gosto porém, muito, de lê-los porque lindamente escritos assim como as ilustrações do Tom Viera. Suas frases correm fácil, solto em claras palavras. Mas não entendo talvez porque há sempre algo, não sei definir, de abstrato? incompressível? no não dito? Talvez uma formação sólida em literatura e teatro, Kultura com K mesmo, disciplinada, judaico/européia. Não sei mesmo! Mas não importa.Gosto!
    Assim introduzida vou ousar dar a minha versão do Obrigada , oposta à sua!
    Já tive muitas decepções por engano meu, exclusivamente, ao dar por profundo agradecimento e ou esperar um retorno. Hoje sei que não se agradece dando e muito menos se espera retorno. Desligaria a tomada sem remorsos e ficaria feliz com meu ato de misericórdia.

    Mas, o que percebi além do óbvio acima, foi que o receptor de sua dádiva, graça, agradecimento, pensamento, percepção da necessidade, não diz obrigado porque não quer se sentir DEVEDOR e assim desaparece do seu circulo de bem quereres.
    Acredito sim, na misericórdia e melhor divisão da riqueza para não ter que dizer obrigada e nem o outro
    achar-se devedor para comigo e sumir a não ser desaparecer com sua morte!
    beijo, Sergio
    B

  2. Sergio, sempre leio com admiração seus textos, porque são paradoxais, bem humorados e inteligentes, porque vão na contramão do assim chamado bom senso, que nada mais é do que o cotiano com o qual nos acostumamos, que acomoda nosso pensar e existir, que oferece coerência apaziguadora perante nossas inquietudes e contradições, ai, doentias, inoportunas, anormais. Somos normais! Anormal é o vizinho que gosta de costeletas de porco! E Tom, chocante sua ilustração, uma imagem vale por mil palavras …

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