Esta não é uma carta de amor,
por Esther Soares

Esta é uma carta de desamor, despedida, aceitação definitiva do jogo que você propôs em nossos últimos dias juntos. Ou meses? A ausência de nós dois em nós me abriu o tempo mais que perfeito para concluir que você tem razão. Aqui, na paz desta paisagem silenciosa, paro o carro no meio do caminho para escrever uma última e definitiva mensagem. Sei que neste momento você está em algum longínquo auditório exibindo seu imenso saber cientifico ou costurando as tripas de algum maluco suicida, tão maluco quanto os nossos aqui da nossa terra.

Você, que conheceu primeiro as minhas tripas, e só depois, de mansinho, escalou as paredes das minhas artérias, se instalou no meu coração e no meu hipotálamo, agora pede passagem para descer, você, que só não conseguiu costurar  os buracos dos meus esgotos incuráveis… Concedido! Entendo. Compreendo. Aceito. Meu lado adolescente caminhou, sei onde piso, sei de onde venho, sei para onde quero ir. Sem choro, sem “lágrimas ardentes rolando pelas faces”, me envolvendo com lembranças românticas, café com pipoca e muito sexo! Paixão mágica que me permitiu semear Rosa em sua barriga, nossa Rosinha, de pele macia, olhos de jabuticaba, nossa princesa de cabelos negros, cachos que dançam com ela quando ela dança ao som do vento. Para mim, uma poesia! Por isso escrevo esta mensagem, minha inesquecível amada amante, amiga, salvadora, conselheira. Entendo e aceito seu novo amor, esse novo amor que veio desmoronar nosso cotidiano feliz. Feliz? 

Há meses tenho procurado elaborar esta mensagem para lhe falar de minhas escolhas. Espero que você a leia hoje à noite quando acabar sua aula, ou operação, sua entrevista ou o que quer que esteja fazendo: minha decisão já terá se cumprido nessa hora. Te devolvo a sonhada liberdade para livrá-la de algumas atividades que sempre te incomodaram.

Hoje fui buscar nossa pequena na escola e a levei para conhecer aquela represa onde você me pescou, lembra? Você salvou minha vida…  – e agora me sugere o fim dela. Rosa adorou molhar os pés na água fria, mas teve medo de algum peixe lamber seus dedos. Rimos muito. Depois tomamos um lanche: “Paizinho, eu te amo, eu amo muito você”, ela disse, o olhar doce de sempre, me beijou e adormeceu no banco de trás. 

Então comprei alguns galões de álcool e retomei o caminho. Mas parei aqui para te mandar esta mensagem: enlambuzei o carro, os bancos,  enlambuzo nós dois, nós três, nossas memórias, nosso Passado, nossos projetos de Futuro. 

O cheiro está ficando insuportável. Agora é encontrar a ribanceira, o poste, a árvore, o fim do caminho. Com cautela procuro, desta vez não posso fracassar. Mas antes clico e me envio pra você.

Fique tranquila, amada, Rosa está dormindo, não vai doer…

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