Há alguns anos, plantei uma goiabeira roxa da Malásia, que se desenvolveu rapidamente. Diferentemente da goiabeira brasileira, que gosta de crescer se contorcendo toda, a malaia foi se erguendo em linha reta. Muito pródiga também. Precocemente, começou a me presentear com grandes goiabas roxas, todas elas já devidamente habitadas por, pelo menos, um morador, igualmente roxo. Nunca me incomodei com bicho de goiaba. Não é um ser asqueroso como o rato ou a barata. É um bichinho até simpático, com o qual aprendemos a lição de abandonar o egoísmo e partilhar o alimento.
Desde criança, a goiabeirinha foi uma planta delicada, franzina. Para protegê-la dos fortes ventos que sopram no Planalto Central, amarrei-a numa estaca de madeira. Deu certo. Ela foi esticando seu tronco esguio e hoje está uma moça feita, com mais de 3 metros. Escrevi lá em cima que ela cresceu em linha reta para dizer que essa retidão não era perpendicular ao solo. Ela não teve culpa, coitada. A estaca devia estar inclinada e ela se viu forçada a acompanhar esse caminho imposto e diferente da sua índole. Aquela imperfeição me incomodava os olhos. Uma moça tão elegante e torta? Eu tinha que reparar a minha imperícia e dar um jeito.
Tentei de tudo pra endireitar a modelo magricela: escorei, coloquei novas estacas mais grossas, amarrei-a no muro. Nada funcionou. Quando lhe retirava as amarras, ela voltava à sua posição oblíqua. Parecia uma adolescente birrenta. Parecia querer me castigar por tê-la obrigado a seguir uma vida torta. Por fim, resignei-me; entendi e aceitei. Inclusive comecei a achar que esse jeito rebelde demonstrava a obstinação e altivez da minha menina. Bobagem. A obliquidade não era tão grande, e só era notada sob alguns ângulos. Além dos frutos, a malaia (naturalizada goiana) dava-me sombra e servia de poleiro para rolinhas e pardais. Era uma graça.
No último sábado, bem cedinho, olhei-a e ela me pareceu mais inclinada que antes. Talvez ainda estivesse sonolenta àquela hora da manhã. À noite houvera uma ventania pesada e ela deve ter gastado muita energia para se manter de pé. Agora estava economizando a sua resiliência e se entregava à força da gravidade. Permaneci na sacada, mirando-a com olhar paternal, quando me veio a frase cantada pelo pensador baiano Compadre Washington: pau que nasce torto nunca se endireita. É isso mesmo, compadre: goiabeira roxa que nasce e cresce torta nunca se endireitaria. Às vezes, poderia até entortar mais, endireitar nunca.
Na região onde nasci, em Minas, todo mundo chama árvore de pau. É pau grosso, pau fino etc. Pensei que Dra. Mayra Pinheiro se escandalizaria com a minha árvore. Pra mim, a goiabeira é feminina. Para a capitã cloroquina, que viu um símbolo fálico no logotipo da Fiocruz, ela seria um pau, roxo e com tendência à esquerda. Um horror. Por falar em CPI, lembrei-me de que era o dia 29 de maio de 2021, dia de manifestações contra o atual governo. Na hora, captei a mensagem: a minha geniosa goiabeirinha aumentara e mantivera intencionalmente a sua inclinação para a esquerda. Era a sua forma de protestar. Sorri, satisfeito, ao descobrir que a minha filha era uma esquerdista roxa.
Que goiabeira arretada.
Um belo conto,contemporâneo,real,maravilhoso.
Parabéns Luciano
Abraços
Suzana Gonçalves
Adorei o conto Esquerdista Roxa, em tempos de CPI e capitã cloroquina, cheio de amor à goiabeira feminina e resiliente, que nunca vai endireitar… Parabéns, escritor!
Que descoberta boa, Luciano. Delícia de conto, parabéns!
Que final épico!!! Parabéns!!