Espelho de silêncio, por Lourdes Gutierres

“Só uso a palavra para compor meus silêncios.”

Manoel de Barros

Não fosse o temporal vindo ao meu encontro, teria percebido seus passos misturados à terra, e não me surpreenderia com seu vulto na vidraça. Um corpo em traços incertos a mover o redemoinho de lembranças, girando na sombra da despedida. Partida sem volta, mas você estava aqui, retornara.

A chave da porta estalou espanto, você entrou. Seus braços pendiam como se acabassem de soltar um fardo de peso insuportável, e os olhos vagavam pelo meu canto de espera. Chegou tal como havia ido, sem anúncio. Trêmula, simplesmente eu percorria seu contorno até mergulhar em seu olhar oceânico, em busca da rota desconhecida, de respostas para indagações que nunca fizera.

Como se apenas sua presença bastasse, você deixou-se ficar ao meu lado. Sem nada dizer, contemplava a tela exposta na parede branca, uma antiga locomotiva encoberta por cipós e plantas rasteiras. Em seu rosto sombrio, o sinal que eu não conseguia decifrar. Lembrei-me da música que dançávamos, de sua camisa de punho arregaçado, dos cadarços em seus sapatos pretos; também de certo gesto seu que atestava uma interrogação indefinida. E se você a definisse naquele momento, o que teria para lhe dizer? Da buganvília que cobre a varanda com seus ramos de espinho, mas que neste ano quase não floriu? Da rolinha que tem vindo ciscar o quintal e do colibri que sumiu depois de o hibisco secar? Ou contaria do furo na calha por onde caem as goteiras da chuva? Talvez eu falasse do livro do Cortázar que trata de enguias e estrelas, conexões improváveis poderiam iluminar espaços na alma inquieta, talvez…

Quem sabe você me diria que nada deu errado, apenas era preciso retomar as esperanças. Quando o estrondo do trovão se fez presente, percebi que nenhuma ferida mais sangrava em mim. Minhas mãos removiam brasas apagadas, refletidas no espelho silente da memória. 

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