Escatológica I – Grummus Merdae, por Sergio Zlotnic

1 – A Lei
Toda regra tem exceção. Porém, raramente, uma vez ou outra, surge uma regra sem exceção nenhuma. Regras sem exceção. São poucas. Mas existem.

Vamos a uma!

Todo bandido, ao assaltar uma residência, faz cocô! Não num vaso sanitário, nem num peniquinho, pois seu gesto é uma performance, uma instalação. Tem significado. Tem glamour…

Ele faz seu cocô sobre a mesa da sala de jantar, por exemplo. Oferecendo-O aos deuses.

A psicanálise sobre tudo se debruça. Isso não ficaria de fora. Encontramos em Freud – e aprendemos:
Grummus merdae é o nome desse ato. Em latim. Très chic!

Há duas razões que explicam o cocô do bandido.
a) A primeira, fácil de compreender, dá à merda o caráter de agressão. É oriunda da selva! Demarcação de territórios. Além disso, nas cidades, longe do mato, há degraus sociais. E a distância abissal entre os estratos promove ódio entre abastados, de um lado, e desfavorecidos, de outro. Há escassez na casa do bandido. Enquanto que na casa assaltada abunda tudo. O ladrão tem raiva do contraste. A exuberância que encontra ali, na casa dos ricos, é como uma bofetada na sua cara. Plaff!
Varanda gourmet; vidros blindex; home theater; suíte dupla; jacuzzi; hidromassagem; bidê; talco; ladrilho hidráulico; vidrotil; pixixê; elemento vazado; criado-mudo; abajur; pé direito alto; cobogó; saca rolha; biombo; gaze; leiba; flit; detefon… Injustiça!
Vinga o ladrão assim sua raiva: defecando.

b) A segunda razão é menos evidente, mas de lógica irretocável. Inquestionável. Retroativamente (é Freud quem diz), o cocô é reparação infantil. Conserto pelo mal afligido. Um prêmio ao dono da casa.
“Roubei, porém deixo um presente a você”, diria o bandido, como a criança que dá aos pais diariamente um lindo cocô, logo cedo, pela manhã (quando é boazinha). Festa doméstica. “Fez cocô! Viva!”, dizem os pais, exultantes. Nem é pra menos!

2 – Caso clínico
Foi assim que, um dia, há anos, um paciente infeliz chegou ao meu consultório, queixando-se de ter sido assaltado. Enquanto estivera ausente, alguém entrou em seu apartamento e levou o que conseguiu.

3 – Análise do caso
Eu, muito sábio, ciente do grummus merdae, pois sou doutor renomado, o que não é pouca coisa, não é bolinho frito, de jeito nenhum, indaguei pela universal assinatura do bandido.
– E o cocô? E o cocô? E o cocô?, perguntei várias vezes.
O paciente, entretanto, não havia constatado nada de diferente ali em seu chateau. Aparentemente, além da perda de muitos de seus objetos queridos e caros (e dos valores levados), nenhuma nova instalação, nenhum vestígio, nenhuma escultura. Nadica de nada. Como eu insistisse na pergunta (E o cocô? E o cocô? E o cocô?…), ele gritou, muito nervoso:
– Não tem cocô nenhum. NENHUM. Você só quer saber de cocô!, acusou.
Não está mais aqui quem falou, pensei. Deus, porém, é brasileiro.

4 – Prognóstico
Na sessão seguinte, dois dias depois, ele me chega devastado: “Doutor, encontrei a bosta do bandido”, me conta. O ladrão havia defecado num balde e, em seguida, enfiado o continente (com o conteúdo) embaixo do tanque, na área de serviço do apartamento. O balde só foi encontrado no dia feliz de lavar roupa.
Enfim, repito: todo bandido, ao assaltar uma residência, faz cocô!
Nessa regra, não há exceção.

5 – Moral – Nunca discuta com um doutor.

*Ilustração por Adão Iturrusgarai
*Ilustração por Adão Iturrusgarai

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SERGIO ZLOTNICPsicanalista, é Pós Doutor em Psicanálise pelo Instituto de Psicologia da USP. Pesquisador dos diálogos de Freud com os campos da arte. Colunista do Portal da SP Escola de Teatro. Pela Editora Hedra, lançou o livro de ficção Baleiazzzul, alusão ao atravessamento do processo psicanalítico. [email protected]

 

ADÃO ITURRUSGARAI – É cartunista, ilustrador e artista plástico brasileiro. Vive entre Argentina e Brasil. Seus trabalhos são publicados no jornal Folha de São Paulo. Tem mais de 20 livros publicados em vários idiomas. Paralelo a estas atividades, tem pinturas que podem ser conferidas [e adquiridas] em seu site. *A ilustração aqui postada é inédita e foi criada especialmente para a série ‘Escatológicas’.

4 comentários

  1. Sergio, estou rindo demais! A escatologia sempre teve lugar na literatura, mas quando vem permeada de humor, é uma surpresa! Aliás seus textos são sempre surpreendentes.
    O cocô, tão importante em nossas vidas, tão escamoteado, coitado. Por isso às vezes nos maltrata: por excesso ou por escassez, quando vem como gostamos, também fazemos festa!
    Agora do ponto de vista prático: no caso eventual de um ladrão em minha casa, seguramente vou procurar o cocô, mas….e se eu estiver por aqui? será que vai pedir para ir ao banheiro?

  2. Sérgio,

    ( Nunca mais vou discutir com meu doutor a nao ser o dr. proctologista…. risos amarelos)

    Voce recorta uma foto de um cenário onde só sobrevivem exceções às regras em qualquer
    nivel de uma sociedade minimamente regrada.

    (A imagem do coco deixado pelo ladrao lembra a foto das caixas com dinheiro do sr Geddel.. risos)

    Seu paciente como eu, nao queremos saber do coco. Ele está todo dia debaixo da minha pia dentro
    da bacia de roupa limpa. Eu estou cheia e muito infeliz com os cocos que vejo boiando no remanso.
    Sei que meu retorno nada tem de literário/ poetico , mas é como sei responder com cuidado e admiraçao por seu escrever. bj. b

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