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Então, São São Paulo Meu Amor, por Carlos Schlesinger

Então, como se diz em São Paulo para iniciar qualquer frase, hoje vou falar da Paulicéia. Em realidade, sobre linguagens e maneirismos, é bem verdade que o baixo Rio de Janeiro inicia suas falas hoje, com um então, o que que acontece (sic).

Então, o que que acontece? Acontece que sou carioca e em meus textos esparsos aqui já fui até elogiado como sendo da estirpe dos cronistas cariocas. Mas acontece que não sou cronista, nem escritor, mas um curioso esforçado das letras. E acontece que eu morei em São Paulo, por quase três anos. Foi um choque cultural. Saí de Ipanema, da minha escola entre o Arpoador e o Posto 6, da cidade brejeira, e fui transplantado para o bairro da Aclimação, em um apartamento com vista lateral para o prédio vizinho e a de fundos, do meu quarto, para o cemitério.

A escola, uma desgraça. Primitiva, provinciana, com pátios de recreio separados para meninos e meninas, um dono que era o Professor de História e ensinava que o Presidente Roosevelt havia sido assassinado a pauladas, razão final para meu pai, norte americano, exigir a minha saída da escola. Trinta anos depois, voltei à porta da escola, com minha irmã, e em exercício catártico, cuspimos no portão.

Me protegi, sendo objeto de pequenos bullyings, como ter o apelido de x ( xix, pela pronúncia), imaginando que era David Copperfield que fazia parte da vida passar por essas infelicidades.

A cidade era cinzenta, fria e garoava. Comia-se bem, porém, e meu lazer era limitado aos cinemas da Rua Domingos de Morais, no Largo Ana Rosa. Ali assisti operetas de Eddie Fisher e Jeanette MacDonald , depois de comer pastel de palmito com caldo de cana na pastelaria da porta .

Ia no boliche da Rua Vergueiro esparsamente e fiz dois amigos. Localizei um há pouco tempo, que revelou-se um bolsonarista feroz.

Então, como sempre os então, o que aconteceu?

A  vida mudou. Mudei de escola. Acordava às 5h15, vestia o casaco da escola que não protegia do frio inclemente e descia, com minha irmã, a Rua Paula Nei para tomar café no copinho de cachaça do bar do Seu João, com um bolinho daqueles que vinha em um saco plástico enfiado no espeto.

O ônibus da escola chegava às 6h e cruzava a cidade durante uma hora. Ipiranga, Cambuci, Tatuapé, Lapa, Braz, até chegar no Bom Retiro. Sou um dos poucos que consegue se orientar em São Paulo, por conta desses anos de idas e vindas, depois de ônibus comum.

Assisti rasgarem a 23 de Maio. Lembro-me bem dos tratores abrindo a avenida…

Mudou o mundo ou mudei eu? Sem abandonar o Flamengo, converti-me ao Corintianismo. A adolescência revelava novas possibilidades. O Shopping Iguatemi e suas lojas de discos  – acho que uma, chamada Hi Fi – e as lanchonetes criativas – Hamburgão – agrupavam os jovens. Festas, chamadas de bailinhos,  faziam esquecer as praias e os velhos amigos e a pujança da cidade se revelava, com suas riquezas, suas fabulosas feiras livres, os luxos e a educação primorosa distinta do escracho de meu torrão natal.

E um dia, se deu a volta ao Rio de Janeiro, pela saudade que até hoje reputo incompreensível que meu pai tinha da praia.

Eu não queria voltar. Estranhei o calor, a desorganização, os guardas de rua folgados em suas bermudas, em contraponto à Força Pública de luvas brancas de São Paulo. Novamente perdi meus amigos, mas o modelo resignado David Copperfield não me servia mais.

Fui salvo pelo Maracanã, pelo Sol, pela praia, pelos teatros que frequentava sozinho, por falta de companhia, salvo no fim da história, por mim mesmo, como deve ser.

Voltei a São Paulo quase uma centena de vezes nos anos subsequentes e, em verdade vos digo, quando aí estou, também estou em casa.

São São Paulo, meu amor, da deselegância de suas meninas, da esquina de Ipiranga com São João. Ainda não havia para mim Rita Lee, a sua mais completa tradução. Rita Linda.

Carlos Schlesinger Criando Caso todos os Dias

7 comentários

  1. Lindo, leve e delicioso texto, que a gente devora e chega ao fim morrendo de pena! Bela homenagem à Rita Lee. Adorei!!

  2. Parabéns, Carlos. Bela crônica que retrata, com honestidade e carinho, a interseção desses dois mundos incongruentes que são Rio e São Paulo.

  3. Gostei muito do texto, leve, agradável que da uma tão boa ideia em poucas palavras do Rio e de São Paulo. Senti o passar do tempo que nem sempre notamos e que fica tangível com as cuspidas no portão da escola. E achei muito feliz a conclusão com a alusão a Rita Lee.

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