Clube dos Escritores 50 mais José Carlos Peliano Nise da Silveira

Encontros com Nise da Silveira,
por José Carlos Peliano

Segui o que queria e ganhei o que alumia. Foi desse jeito que cheguei a Nise da Silveira e dela fiquei amigo por alguns anos de encontros, aprendizados e encantamentos.

Meados dos anos 1980 até fins dos 1990. Vivia meus saudosos 30 e 40 anos. Trabalhava no IPEA na área social, que cuidava do mercado de trabalho. Em 1992 defenderia minha tese de doutorado em economia pela Unicamp/Campinas.

Conheci primeiro o marido de Nise, Mário Magalhães da Silveira, de fato seu primo, médico sanitarista, vigoroso marxista, humanista de primeira hora. Com ele aprofundei meus conhecimentos do marxismo, história da humanidade e importância da relação entre o ser humano e o ter humano.

Fui pela primeira vez à casa de Mário na rua Marquês de Abranches no Rio de Janeiro, perto do Largo do Machado, a seu convite, para estar mais uma vez com ele, jogar conversa fora ou dentro, dependendo do assunto. Ao lhe perguntar como ia passando, ele respondeu “atravessando”.

Pois atravessamos oceanos, países, regimes políticos, sistemas econômicos, desde a perspectiva marxista, abrangente, histórica, materialista. Aprendi tanto com ele quanto com meu curso de doutorado na Unicamp em 1982/83, guardadas evidentemente as justas proporções. Sua visão ainda clareia as alamedas por onde atravesso diariamente minhas perguntas e respostas.

Numa dessas visitas a sua casa eis que surge Nise, pequenina em tamanho, imensa em presença. Apresentados por ele, exibi meus parcos conhecimentos de psicologia, matéria que sempre me interessou. Ele se ausentava quando ela começava a abordar o tema. Ou não gostava ou não devia se sentir confortável. Não sei se era assim, mas a mim parecia, pois nunca lhe perguntei.

Sempre que chegava ao Rio fazia o que tinha de fazer e ia para a casa deles. Não, melhor dizendo, dela, porque, de repente, a partir da apresentação, ficava conversando mais com ela -ou só com ela, a depender da ocasião. Para mim, era uma apoteose, estar com uma gigante da psicologia analítica, mais escutando e aprendendo do que dando opiniões ou palpites.

A pequena grande mulher me tomou pelo afeto, desprendido, generoso e disponível, embora fosse direta, objetiva, sem rodeios. Ela sempre me teve como amigo de coração, conforme a dedicatória feita em seu livro Imagens do Inconsciente estampa para a minha vida afora: “Ao querido amigo Peliano sempre bem perto do coração”, em 13 de janeiro de 1983.

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Marx combina com Jung? Um marxista junguiano ou um junguiano marxista? Sim, mais ou menos isso. E se encaixa bem. Seja nas contradições da ordem capitalista, seja nos eventos numinosos do marxismo. O fato é que é uma combinação saudável de vida e trabalho. Principalmente a maneira de ver e ir desvelando o segredo da vida.

Minha amizade com ela era e foi uma imensa bênção espalhada em pelo menos quatro grande momentos distintos. Resumirei brevemente sem sequenciar em ordem datada. Encontros tidos sempre em seu apartamento do segundo andar ou em seu escritório logo acima no terceiro andar, o gatil, onde moravam seus gatos prediletos, segundo ela, amigos e conselheiros.

Depois de algum tempo e vários encontros, um dia ela me perguntou se eu não gostaria de ficar no Rio trabalhando com ela e aprendendo a lidar com os meandros da psicologia analítica. Não só na Casa das Palmeiras e no Museu de Imagens do Inconsciente, mas também nas aulas por ela ministradas aos seus alunos no escritório do terceiro andar.

Emoção como essa nunca me bateu tão forte, querida e tentadora, na área vocacional ou profissional. Abracei-a emocionado, agradeci-lhe imensamente, mas não lhe respondi na hora. Ela sabia de minhas dificuldades e não me pressionou. Disse-me que pensasse com calma.

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Eu poderia ser hoje um psicólogo analítico junguiano. Poderia. Não aceitei, lamentavelmente, o maravilhoso convite porque, recém-separado, cabia-me dar uma pensão para minha filha e não poderia ficar sem o trabalho que tinha fora do Rio. Busquei alternativas, mas nada consegui. Perdi o bonde, mas não a esperança.

Por conta desse acontecimento dediquei a ela um poema feito em 1985, Estrela Guia, como agradecimento, admiração e encantamento:

estrela, estrela guia
estrela que me alumia
tem a mim como aprendiz


curva-se a sua guia
o universo que se cria
milhões de anos luz feliz

Uma outra vez, às voltas com meu processo de individuação, sem saber como coordenar as coisas dentro e ao meu redor, falei com ela sobre isso. Calma e mansamente, ela me olhava dentro dos olhos procurando uma guia. Foi, então, que me disse para eu deixar de levar a vida só nos pensamentos. Mais ou menos assim: “deixe a mente de lado, siga em frente, toque nas coisas, faça sempre algo com as mãos, construa seu lado de dentro pelo lado de fora”.

Não sei se foi o que ela me disse ou se sua forte presença, mesmo à distância, o fato foi que aos poucos as coisas começaram a se encaixar, a tomarem outras formas, a me deixarem liberto. Na época, construía minha casa e passei a ajudar os pedreiros, carpinteiros e pintores. As mãos de minha casa me acolheram e me puseram em pé.

Uma terceira vez, enquanto ela me jogava o I Ching (quando conheci o oráculo), um de seus gatos prediletos pulou em meu colo e ficou amassando pão, como fazem. Ela se encantou e comentou: “não se mexa, não tire-o do colo, o gato só vem a você se ele percebe seus sentimentos. Ele gostou de você”.

Durante todo o tempo em que estive com ela aquele dia, o gato permaneceu comigo, ronronando. O resultado do oráculo foi igualmente surpreendente, deu o hexagrama número 1, as 6 linhas inteiras, chamado O Criativo. A mensagem fundamental é “o criativo opera sublime sucesso, amplia-se pela perseverança”. Pensativa, ela adicionou: “pode ter sido o gato que influenciou o I Ching ou este ao gato, mas é ainda possível que os dois se juntaram aqui por você”.

De fato, o oráculo foi consultado por conta de um sonho que tive, onde caixas coloridas de vários tamanhos se movimentavam sozinhas em minha direção. Eu, menino, me assustava de medo até que uma mulher me dizia: “por que você vê as coisas pelo lado errado?”. Nise disse que o oráculo me apontava abrir as caixas que me chegassem na vida sem temor. Devia sempre crer para ver para só então ver para crer.

A última vez foi dias antes de sua despedida desta vida. Fiquei pouco tempo com ela, no quarto, em cadeira de rodas, ela bem abatida, mal falou. De tempos em tempos, no entanto, me olhava profundamente como fizera outras vezes e apenas pronunciava meu nome: Peliano. Um agradecimento, um lamento, um acolhimento, uma exclamação, um adeus?

Pois eu agradeço incansavelmente sua amizade, lamento irreparavelmente sua perda, exclamo abertamente sua sabedoria, mas não lhe aceno um adeus por ela estar sempre comigo, em imagens e no inconsciente.


https://www.socialistamorena.com.br/nise-o-gato-e-eu/

4 comentários

  1. Bom estar por aqui usufruindo de histórias e textos, além de conhecê-los em eventuais encontros do Clube! A Adília foi a responsável por me trazer até aqui. Vai ser bom abrir as manhãs pelas portas de contos e poemas. Vamos que vamos!

  2. Que delícia conhecer boas vivências com Nise, que admiro muitíssimo. Texto delicioso de atravessar, vi gatos, encantamento e memória enredada nos laços de amizade golpeados entre vcs! Lindo texto! Obrigada!

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