blog Clube dos Escritores 50+ Luciano de Castro Dois patinhos na lagoa

DOIS PATINHOS NA LAGOA
ou o dia em que a galinha d’água fez quá quá quá,
por Luciano de Castro,

Sentado num dos bancos verdes do Clube Naval (aqueles que ficam bem próximos à Lagoa), eu lia um Drummond de 1957 quando uma vozinha infantil roubou minha atenção: “patinho, patinho, vem aqui, patinho”. Olhei pra esquerda e vi, agarrado à grade de proteção, o rapazinho de uns 5 anos que insistentemente chamava pelo morador lacustre. Este, impassível e desobediente, continuava seu passeio, nadando pra outro ponto da margem. “Ele tá fugindo, vó. Vamos atrás dele.” “Sim. Vamos, Bernardo. O patinho é seu amigo. É que você precisa falar na língua dele: quá, quá, quá.”  

O menino e a avó seguiram no encalço da avezinha de bico vermelho. Nessa hora, eu desisti do livro e passei a acompanhar os rumos daquele colóquio infanto-aviário. Alguns metros à frente, o bicho meteu-se no meio das raízes do mangue e estacou. Dali não saía mesmo tendo os dois observadores bem perto (na certa, achara ali algum banquete inesperado). Bernardo, que já dominava perfeitamente a linguagem “pática”, falava sem parar; o patinho ouvia, bicava e, vez por outra, respondia. A avó, em êxtase, comemorava: “que lindo, Bernardo! Viu como ele é mansinho? E você é o patinho da vovó.”   

Quando o animalzinho saiu do esconderijo, de barriga e cabeça cheias, notei que não era propriamente um pato, mas um frango-d’água. Existem dezenas deles aqui na Lagoa Rodrigo de Freitas, o que é um bom sinal — significa que a poluição nos manguezais está diminuindo. Eu também, quando vi esse pequeno navegante pela primeira vez, achei que fosse um pato: é muito parecido. Na época, consultei o meu assessor para assuntos ornitológicos, professor Guilherme Freitas, que me instruiu que aquele era o Gallinula galeata, ave mais aparentada às saracuras que aos patos e que inclusive não possuía aquela membrana natatória típica dos patos.

De mãos dadas, os dois deixaram a margem da Lagoa e vieram na minha direção. A avó continuava a palestrar sobre os hábitos e o linguajar dos patos e outros bichos. Bernardo mostrava-se empolgadíssimo. Quando passavam bem próximos a mim, tive o ímpeto de interpelar a senhora e explicar-lhe que ela estava equivocada: aquele não era um pato, era um frango-d’água e blá, blá, blá… Felizmente, acorreu-me o senso da ponderação e vi que jamais poderia perturbar aquele idílio. Quem era eu pra destituir a autoridade e a sapiência de uma avó? Não, nenhuma Ornitologia, Taxonomia ou qualquer outra ciência me faria conspurcar a sagrada relação entre uma avó e seu neto.

Antes de retornar à leitura, fiquei observando os aventureiros, que iam felizes na direção de um casal — deveriam ser a mãe e o pai do mocinho. A eles, o pequeno Bernardo relataria suas aventuras, descobertas e novas habilidades na comunicação com as aves aquáticas. Talvez um dia ele aprenda que aquele não era um patinho, mas um franguinho metido a pato. Por ora, o melhor é que desfrutasse do tépido e macio amor de vó. Pousei meus olhos no Morro dos Cabritos. Sorri, encharcado de ternura, e voltei aos escritos.   

Rio, 21 de março de 2023

10 comentários

  1. Penso que muitas vezes a verdade verdadeira é o de menos, né? A excursão pela vida, pelas descobertas infantis, sobressaíram. Que bom que deixou o livro meio de lado e fez essa leitura/ escrita.

  2. É muito gratificante saber que a beleza da vida está nas pequenas coisas, mas que carregam um significado gigantesco. Todos carregamos lembranças de bons momentos com nossos avós. Tenho certeza que esse episódio com sua avó e seu parceiro lacustre (independente de qual espécie seja) ficarão sempre na memória desse garoto!

  3. Beleza, Luciano, estava lendo que conhecimento e consciência é um ato de conhecer testemunhando. Você o exemplificou com graça e amorosidade.

  4. Muito boa a sus cronica sobre os laços entre avó e neto .
    Adoro a sua forma de contar uma historia . De um fato tão simples se transformou numa linda pagina .
    Parabens, Luciano !!

  5. Sensibilidade, curiosidade, senso “ciento-poético” reunidos, para nosso deleite, nessa sua crônica. Me vi sob um dia de sol descobrindo sobre patos e galináceos na Lagoa, talvez uma Rodrigo de Freitas. A arte nos transporta, a escrita nos sacia da fome de beleza e felicidade. Ansiosa, agora, por netos e netas e pela sabedoria que juntos cultivaremos. Inspirador!

  6. Uma das maiores qualidades do ser humano é saber contemplar, com simplicidade, as criaturas. Você transformou um singelo acontecimento em algo sublime. Amei! Belíssima

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