Para Paulo A.
Os japoneses enrolam o sushi com a mesma elegância com que arrumam um vaso de ikebana ou aparam um bonzai. Os dedos se movimentam sinuosa e rapidamente enquanto a palma úmida da mão acolhe o arroz para ser enrolado sobre o peixe.
Sai um sushi por segundo, simétrico, branco e rosado. Enrolam-o no ori, uma folha de alga marinha, como se estivessem alisando uma tora de madeira de forma e proporções exatas.
A afiadíssima faca, como o movimento preciso do carrasco ao cortar a cabeça de um homem com machado, acerta nos espaços medidos em centímetros entre um e outro corte tornando, cada rolinho, um exemplo de perfeição .
A cada novo sushi ou sashimi, numa elegante dança sequencial, é difícil distinguir quando estão triturando as bolinhas de arroz, limpando, com o pano molhado, as mãos e a mesa de trabalho. Enrolam peixe e arroz, até o momento supremo da finalização quando, milimetricamente, enfileiram, como as cartas de um jogador profissional fazendo uma canastra real, o trabalho sobre um prato de cerâmica finamente esculpida no barro.
É uma encenação de moto contínuo, gracioso e eficiente.
Numa noite destas, sai para “jantar japonês“ – como dizem, na falta de outra qualificação mais específica – ao sentir uma forte demanda pelo molho ácido de soja, o picante do wasabi e o incandescente gosto do gengibre, e o suave acompanhamento do saquê com a borda salgada.
Sempre gostei das pinturas japoneses em geral, mas em particular do artista Hokusai ( 1870-1849) que, através de gravuras, contam para o ocidente, de maneira oriental, sutil e concisa, os costumes diários e prazeres de alcova. Gosto do fato que ensinam para as crianças sobre harmonia e precisão através das formas construídas da técnica de urigame. Gosto dos jardins quietos, plantados da mesma forma como são manipulados os sushis. Precisos, cada planta significa um gesto, encerra em si um conhecimento da matéria e seu desenvolvimento.
O que mais me comove é a dignidade da pobreza que tomei conhecimento através do filme Balada de Narayama. Manda o costume que os mais velhos devem ser levados para uma montanha alta onde morrem, lentamente, de fome e congelados. O significado para tal costume é uma boca a menos que já não consegue produzir o seu próprio alimento.
Porém, o que reduziu a minha arrogância ocidental em relação à velhice e morte (acreditando na ilusão de que poderia me manter jovem eternamente, basta eu querer), é a indicação de que chegou a hora para os velhos improdutivos subirem à montanha quando os 32 dentes com os quais nascemos começam a cair por tantas razões que só o envelhecimento conhece. O ritual é realizado quando os primeiros flocos de neve começam a cair, as cerejeiras antes abundantemente floridas, delineiam com delicados galhos, como que espetados na montanha, o rio gelado com carpas correndo na direção contrária à corrente do rio. Também uma forma delicada de marcar o dia do fim de um velho assim como a natureza indica a alternância das estações. Mais profundamente humano ainda, – para os dias de hoje – é o filho mais velho ser o designado a carregar o ancião nas costas através de dificuldades inimagináveis até chegar ao pico da montanha. Durante o trajeto, de nada macabro, a caminho da morte planejada, carregador e carregado são proibidos de se falarem. O importante na vida fica no não dito!
Penso porque tais tradições, tão naturais ao sentido do tempo, são tão estranhas para nós?
Falta de respeito para com as razões e mais, com o sublime da natureza?
Não sei se as gerações japonesas pós-guerra continuam a cultuar e promover a filosofia do passado, mas observei, sentada no balcão do restaurante, observando o manuseio da comida japonesa, – mesmo se esta chega com adaptações,- o fundo cultural nos ensina sobre elegância e precisão no ato de viver.
Bettina, lendo seu texto pensei no ofício da escrita, que também persegue a simplicidade, a precisão, a excelência e, alguma posteridade.
Que texto delicado; como um shushi!
Algumas metáforas excelentes. A do carrasco (evidente homenagem a Paulo!); a da canastra real (genial!).
Lapidar, densa, cheia de sabedoria, esta frase:
“O importante na vida fica no não dito”!
E, assim, aqui, eu me calo!
Betina,
Bonito texto! Eu, como você, também admiro a cultura japonesa. A delicadeza, a busca da harmonia e o respeito ao silêncio. Voce nos aproximou deste universo com suas belas e precisas imagens.
Bettina, reli seu texto e gostaria de lhe dizer que é uma beleza.
Na noite do sarau já tinha apreciado, mas na releitura, a narrativa cresceu: o cuidado com as palavras, o procedimento vagaroso e preciso dos procedimentos do sushi/escrita, o percurso que vai do balcão às montanhas de Nagayama, onde os velhos encontram a morte. Um universo entre o balcão e as montanhas, por onde a vida passa.
Oi Bettina, oi Sylvia, também gostei muito dessa imagem do balcão que não divide, mas aproxima tudo…vc assistiu Midnight Dinners? É uma série japonesa da Netflix (eu acho) cujo cenário é um micro restaurante em Tóquio que só abre a partir de meia-noite. É no balcão minúsculo do lugar que se sentam todo tipo de humanos que estão acordados com suas ‘humanices’, como diria uma amiga da minha filha….muito bom!
Bettina, grande cronista. O olhar atento, a narração precisa e detalhada. O tique-taque no compasso japonês. Retrata a grande obsessão nipônica: a ordem. Mal e bem ao mesmo tempo, o controle sobre qualquer processo é o estigma da sociedade japonesa. Por isso, o acato ao fazer, a solicitude, a benevolência, a consideração pelo outro, a elegância que você cita e o minimalismo nos gestos são decorrentes de uma postura em que se almeja o fluir do presente para a consecução final. Seja essa qual for. Inclusive, ser o carregador da morte da mãe. É interessante que você tenha emparelhado, como o Zzzlot apontou, o corte do peixe e o movimento do carrasco. Em ambas as situações o que se procura é a mais perfeita forma de fazer seu “serviço” sem entraves para que a ordem das coisas não se desvie. Mesmo quando transgressores, os japoneses tem uma necessidade de transgressão em ordem. É como marcar hora para protestar. O lado ruim disso? Bem, é outra história.
Beleza de texto. Muito obrigado.