Diário de viagem, por Bettina Lenci

A curva do Tempo a 100 anos da Revolução Russa

Curioso que quando me  perguntam  se vi ou estive em algum lugar específico num determinado País ou cidade, ou se provei do filé de tal restaurante, se respondo que não, a reação do autor da pergunta é imediata:

– “como não!? Você perdeu o melhor da viagem!” Nesta hora o melhor mesmo é se dar por vencido. O ouvinte, da sua parte, está somente atento às dicas para saber se vale a pena conhecer tal lugar.

Viajar para voltar contando quais museus visitou, que concertos e peças de teatros assistiu ou, minuciosamente, relatar o que comeu em tal restaurante, comparar companhias aéreas ou recomendar certos hotéis faz parte do conhecer outras terras. Sem estas informações pode-se perder o prazer da viagem,  mas diz pouco sobre “quem é” este País e cidade, o que sentiu ao vivenciar ruas e restaurantes menos conhecidos do turista, esquinas e bibocas que nem sempre estão no guia.  

Sempre gostei de viajar junto aos escritores que relatam, em seus diários de viagens,  os sentimentos e paixões,  focando  detalhes que  chamaram a atenção dos sentidos. Como paisagem e pessoas os inspiraram para novas observações reflexivas, filosóficas. Como descortinavam seus sentimentos frente a uma obra de arte. Lia-se nas entrelinhas que ao viajar o universo, antes desconhecido, se amplia e se torna  íntimo para nunca mais deixar de sê-lo mesmo se lá não mais voltar. Entendia-se que o conhecimento se dilata e se instala exigindo  mais conhecimento através das vivências inesperadas. É verdade o que li!

Aterrisei na Rússia com duas imagens na cabeça. Uma, de homens e mulheres, destemidos soldados e ótimos dançarinos com botas vermelhas e longos bigodes embebidos em muita vodka. A mãe babouchka e os filhotes que saem de sua barriga  como figura central  e simbólica da mãe terra. A outra, advinda da violência e barbaries impetradas aos cidadãos no tempo do comunismo. Estas imagens  se esvaneceram ao longo da visita, tempo para dar lugar a uma estranha mistura de medo ou insegurança em relação à sua  singularidade. Grandiosa, emana poder inconteste.  Pobre  e rica, dourada e cinza, pueril e adulta experiente. Pós moderna. Indevassável com suas fronteiras e seus segredos enterrados. Poderosa.  Intimidadora. Ela fascina o viajante apesar de impenetrável. Não sei se é possível falar em beleza como se declama sobre alguns países e cidades europeias, mas certamente nenhuma outra  exprime com tanta precisão o grandioso majestático, o inusitado, a tradução demarcada pela presença do Poder Absoluto, orgulho de outrora e de hoje , fortes e presentes em iguais forças e intensidade.

Voltei deste País distante e misterioso, guardador de  mistérios por alguma secreta decisão autoritária , (foi a guia que assoprou tal informação , em confiança, ao pé do meu ouvido), um País de vastas estepes geladas , de habitantes duros no trato, que falam uma língua difícil e desconhecida para  quem vem  de qualquer lugar que não seja da Rússia.   Não  há dia depois da minha volta em que uma nova sensação lá vivenciada não  se acrescenta às demais parcamente reveladas.  

A Rússia marcou-me em código de barra a impressão de ter engolido um grande pacote de beleza e assombro, deixou minhas entranhas imbuídas da nostalgia peculiar das construções do passado imperial, cópias quase ingênuas se comparadas com as originais inspiradoras. Todo o estuque e ouro dos palácios não  conseguiram remeter-me  à atmosfera de Paris ou Veneza como Pedro ,o Grande, arquitetou para São Petersburgo. Mas ela é inesquecível justamente por chegar aos meus olhos como uma cópia magnifica e deseducada , sem o refinamento dos reis que regeram a Europa à mesma época que os tzares.

Creio que o temperamento russo desejou construir castelos iguais aos seus colegas europeus , mas do seu jeito: independentes! Os castelos viraram palácios que me remeteram  ao da Cinderela! São Petersburgo  contrasta, sem cautela, com as obscuras, pesadas e cinzas edificações de Moscou em um estilo sem referências, rodeadas de muitas catedrais ortodoxas  cujas cúpulas brilham como lantejoulas douradas que podem lembrar bolos de criança construídos por hábeis doceiras. A imponência destas catedrais, ensimesmadas por altas torres pintadas em cores berrantes,  cujo  interior marca mais uma diferença com as catedrais europeias,  é desproporcional à exuberância externa.   O crente piedoso fica por horas em pé,  imerso nas sombras, circundado por volutas e paredes repletas de ícones  de olhar penetrante como se  desconfiados na nossa crença em  Santos,  Virgem Maria e Jesus Cristo. Senti ali um frugal domínio e obediência ao Superior, enquanto no ocidente penso que reina o fausto sedutor.

Se tivesse que descrever o final destas minhas impressões, diria que a Rússia chegou até mim como um cenário  preparado para uma ópera  que foi cancelada porque outra história foi introduzida passando o  cenário anterior a não servir mais para o enredo . Não houve uma superposição, uma continuidade em transição.  A ruptura foi violenta! Abrupta. Sangrenta, impiedosa com o passado imperial. O contraste do momento histórico que mudou o rumo do pensamento do mundo contemporâneo é evidente na arquitetura e atmosfera das duas cidades. Um cenário com gosto de pasta de confeiteiro , criado  para a aristocracia russa do século XVIII que se desejava europeia, tão longe da realidade do País quanto o Sol da Lua. Outro cenário , cujos prédios  – de forma e aparência taciturna – construídos no século XX por revolucionários convictos de que todos devem ser iguais na riqueza e na pobreza,  são a expressão do  militarismo ditatorial que emana das casernas a partir da Revolução de 1917.

O ouro, o estuque,  os  brilhos vibrantes dos tzares  não se sobrepõem ao concreto triste e cinza da Revolução para  contar  a passagem do final do séc. XIX para o XX na Rússia. Nestas duas  principais cidades, palco dos acontecimentos, é possível ler a História dos 100 anos, hoje relembrada e reinterpretada: a cisão de duas visões de mundo e principalmente o nascedouro de nossas modernas e polarizadas teorias sobre as quais pensadores de hoje se debruçam,  como à época, fizeram escritores e teóricos políticos, inconformados, indignados com a desigualdade entre nobres e miseráveis.

Enxerguei, nestas duas cidades, a curva de 100 anos do Tempo. Fascinante!  

Gostaria de voltar a esse País e encontrar o escondido, mas… como conhecer mais se os russos desconhecem qualquer outra língua a não ser a deles?

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BETTINA LENCI – Uma empresária que se realizou tendo como início profissional a história da arte e a fotografia, mas que, posteriormente, descobriu que lendo e escrevendo é possível criar um mundo com um olhar agudo sobre o cotidiano de todos nós.

 

Um comentário

  1. Que impressõs fortes, Bettina! Gosto de relatos de viagem justamente por falarem do impacto que causam no viajante. Um modo afetivo de chegarmos em algum lugar. A cada viajante, uma viagem. Tive a mesma impressão de São Persburgo, muito fausto, excessivo , longe da elegância da Europa. Moscou, pesada e assustadora e ao mesmo tempo vibrante, um lugar para o qual voltaria. Gostei da impressão que relatou, da ruptura brutal entre dois mundos. Uma bela análise!

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