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Viva o Dia dos Mortos!
E dos santinhos miúdos! por Adília Belotti

A gente herda muitas coisas e nem sempre sabe exatamente o que fazer com as heranças que recebe. Às vezes, há que se debruçar sobre as páginas gastas e buscar valor por baixo da poeira do vivido.

Não é diferente com as festas. Herdamos celebrações que atravessaram oceanos, aportaram nas nossas almas e cuja origem nunca nem soubemos. Somos guardiões de velharias que à luz do nosso dia a dia, parecem tão fakes quanto fantasias de camelô.

Feriado de Finados. Visto por este ângulo de sol a pino, parece mesmo apenas uma dessas celebrações velhas de sentido, a começar pela primeira das três festas associadas ao feriado, Halloween. Dia das Bruxas, Made in USA! Cruz, credo!

Não é bem assim. De todas as festas pagãs que sobreviveram e chegaram até nós, Halloween é talvez a mais antiga. E apesar de parecer coisa distinta do nosso Dia de Finados, faz parte da mesma celebração.

George Frazer, no livro clássico sobre mitologia, The Golden Bough, fala que Halloween era celebração de pastores. Porque as festas tradicionais, a gente sabe, são assim feito ponteiros de relógio, marcando no ano os tempos da vida. Assim, para esses nossos pastores ancestrais, as festas ensolaradas de maio sinalizavam o momento de soltar o rebanho nos pastos. Na outra ponta do ano, Halloween avisava da hora de reunir os animais e demais pertenças e voltar para casa.

A colheita guardada nos celeiros, as árvores nuas, a terra em latência, o silêncio adivinhado dos animais, tudo na natureza convidava à grande romaria de volta para casa. E as fogueiras, acesas nas portas, sinalizavam o caminho para os vivos… e os mortos.

Afinal, por que não?

Pois se são apenas os corpos que afastam as almas…

E de fato, Halloween no inglês ancestral falado pelos Celtas que habitavam Lands End, aquela pontinha da Inglaterra que avança no Oceano Atlântico, significa algo como ‘a véspera de todas as almas’, a versão celta do nosso Dia de Todos os Santos.

Dizia-se que na passagem do outono para o inverno, o ar ficava mais fino e mais permeáveis as fronteiras que separavam o mundo dos vivos e o mundo dos mortos.

Junto com os mortos queridos, no entanto, vinham as almas torturadas em busca do calor do fogo e das orações dos vivos, assombrações e espíritos malévolos. Bruxas voavam sobre os rebanhos em vassouras ou galopavam pelos campos frios montadas em enormes gatos malhados. E as fadas e outros seres das florestas ousavam exibir-se aos embasbacados olhos humanos. Era um tempo propício para adivinhações, presságios, apostas no futuro. Quem vai morrer, quem vai viver para acender o próximo fogo, essas eram as perguntas de Halloween. Tempo de mistérios…

O costume de celebrar esse ir e vir das almas entre os mundos vai resistir ao cristianismo e, em 844, o bispo de Roma, Gregório IV proclama o caráter universal da Festa das Almas dos Mortos e a festa de Todos os Santos, dois dias para pausar a vida e festejar a morte: 1 e 2 de novembro.

Herdamos o Dia de Finados, a peregrinação aos cemitérios, as velas e as oferendas aos ancestrais, as rezas humanas que, dizem, as almas do purgatório conseguem ouvir. Herdamos o Dia de Todos os Santos, as missas e as preces feitas aquelas criaturas especiais, que embora usufruindo das visões beatíficas do céu, ainda acham tempo de ouvir os lamentos humanos.

Cada santo tem seu dia, mas hoje a festa é dos santinhos miúdos, humanos e corriqueiros, a menina milagreira, a velha que benzia as crianças, o padre sempre disposto a ajudar. Gente comum, vivendo a santidade possível de todos os dias.

Hoje, a romaria leva aos cemitérios, ponto de encontro, sala de visitas. Na casa dos mortos, os vivos celebram a certeza de que são apenas as durezas do mundo que separam as almas. E levam lágrimas, velas, comidas e doces para animar a conversa… aceita um cafezinho, avó?

*Essa crônica foi originalmente publicada no blog Toques de Alma.

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