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Devoradores e asfixia: reflexões contemporâneas de Liliana Wahba

Testemunhar a baixaria dos embates políticos de quem está à frente nas
intenções de votos não causa mais espanto; ficou habitual.

Candidatos que preservam um mínimo de racionalidade justificam que precisam se proteger de golpes baixos do oponente, precisam, principalmente, demonstrar a seus votantes que têm força e pulso.
Já, aqueles que pertencem a estados totalitários, sejam estes declarados ou manifestos
sob resquícios abalados de democracia, manipulam escancaradamente duas emoções
fundamentais arraigadas em instintos da espécie: o ódio e o medo.


Albert Camus escreveu em 1946, no artigo Nem vítimas, nem carrascos, que o
séc XX era o século do medo. “Um medo coletivo pesando em nossos corações”, como
expresso por Jung em 1958. O poder de aniquilação adquirido com tecnologia avançada,
duas guerras mundiais e a explosão da bomba atômica marcou o século XX. A
correspondência entre Einstein e Freud, “Por que a Guerra”, de 1933, trazia um apelo
pungente. Hoje em dia a sombra da guerra mundial ativou-se novamente com a invasão
russa à Ucrânia. Em determinados períodos da história, e estamos em um destes
períodos cruciais assinalado pelo avanço de direitas e esquerdas radicais com suas
ditaduras de extremos, o medo se globaliza.

Líderes capazes de conduzir sem apelar para a massificação fomentada por
emoções são raros, assim como figuras públicas nas quais possamos projetar aspirações
heroicas. Um menino de cinco anos perguntou: “Se não existe monstro, para que tem
heróis?”, Infelizmente, monstros existem e heróis não mais nos salvam, como escrito
por Brecht em A vida de Galileo:

Andrea: Infeliz é a terra que não gera heróis.
Galileo: Infeliz é a terra que necessita heróis.

Ao invés de heróis salvadores, temos a profusão de personagens truculentos e agressivos, manipuladores em benefício próprio e de seu clã político, usurpadores da moral e absolutamente incapazes de trabalhar pelo bem comum. O povo, que deveria em sã consciência rejeitá-los, os admira, veem neles os arautos do exorcismo contra o mal. Discursos inflamados contra o mal, com matizes religiosas e fundamentalistas,
mantêm a tônica infalível de exterminar os infiéis com determinação para resgatar e resguardar a nação. Esta, entrementes, é depauperada em velocidade esmagadora.


Entre os arrasos educacionais, sanitários e culturais, por vezes com fracos acenos de estabilizar a economia apesar da carência de recursos básicos para um real crescimento econômico, cresce rapidamente a devastação ambiental. A desmedida conquistadora, crescente após a revolução industrial, gerou um novo tipo de guerra insidiosa impingida aos meios naturais que sustentam o mundo ameaçando a humanidade com um processo de autoextinção. Foi demonstrado que pandemias, incluindo a COVID-19, são ligadas a desmatamento.

Já tivemos o exemplo da gripe espanhola (1918-1919) que decorreu da I Guerra. A vinculação entre a peste e a guerra foi relatada por Tucídides, quando a peste de 428AC coincidiu com a derrota de Atenas. Na literatura contemporânea Estado de Sítio de Camus, peça teatral escrita após o final da II Guerra depois de A Peste, retrata a implacabilidade da morte, junto ao despotismo, a crueldade, assim como a generosidade
de uma minoria. Menos esperançoso é Jeux de Massacre de Ionesco, de 1970, em que a malignidade humana se torna o cotidiano de pessoas em desespero que se dilaceram entre si, ainda que o autor não resista em protagonizar a Velha com sua mensagem de amor. Tudo acaba em um grande incêndio.

Incêndios decorrentes de aquecimento global, agravado por poluentes e pelo uso acumulado de fonte de energia fóssil e nuclear aumentaram exponencialmente nos últimos anos no mundo todo. Ailton Krenak, refletindo sobre o ritmo predatório destrutivo traz uma forte imagem: “Estamos experienciando a febre do planeta”.

Junto com a pandemia vivemos epidemias psíquicas. Jung descreveu esse clima de assombramento e de paixões avassaladoras com imagens de terremotos, incêndios, nuvens escuras, simbolizando a consciência colapsando na escuridão. O fogo de afetos que queimam – cobiça, raiva, ambição – consome pessoas, animais, vegetação. Nestes incêndios psíquicos impera o ódio, cujo combustível primordial é o medo do outro que, potencialmente, irá destruir nossos pertences, nossa identidade, nosso futuro e nossa
vida. Melhor atacar antes de ser atacado; o bando age despudoradamente na matilha conduzida por quem tem menos escrúpulos para aniquilar o oponente.

Em decorrência desse estado permanente de alerta e ataque cria-se um círculo paranoico de desconfiança alimentado e aproveitado pela liderança despótica. Os relacionamentos, matizados pela destrutividade, se afunilam em dois polos: devorador e devorado e, consequentemente, predador e presa, sem a organicidade e limites que existem no reino animal. Memórias traumáticas de derrota e de humilhações nos empurram para um e outro polo. Primo Levi em É Isto um homem?, denunciava o pendor mortífero exacerbado de uma sociedade moderna que, em sua normalidade, funciona discriminando dominantes e dominados, oprimidos e opressores, mediante estruturas hierárquicas e privilégios, exploração e violência, frieza e
impessoalidade.

Os perpetradores permanecem em estado de ambição paroxística e
insensibilidade moral; um dos símbolos é a figura do Jaguaretê-Avá (dos índios Guarani e Kaiowa), homens onça com insaciável apetite por carne humana. As presas potenciais adoecem física e psiquicamente, os predadores usufruem a caça enquanto se mantêm no poder e na impunidade. O adoecer de dentro, por excesso de positividade, é apontado por Byung-Chul Han. Dupla fonte de ansiedade; de um lado, nunca alcançar suficiente prestígio e ter que consumir e engolir mais e mais, de outro, o terror de ser tragado e
expelido. Ser expelido é, em última instância, o vislumbre da ameaça de ser abusado, nulificado, cancelado no que tem sido denominado de capitalismo da vigilância. O inconsciente se torna devorador, evacuador (sentimento de ser um dejeto) e, portanto, asfixiante, como nos sintomas de pânico com sua falta de ar.
Novas díades de perpetração e de abuso aumentam a insegurança de quem está na posição de vítima, mas também do perpetrador que teme, por sua vez, encontrar um dominador mais forte do que ele. A qualquer momento podemos nos transformar no estranho vigilado, combatido e expulso. Black Mirror é uma série que retrata o malefício do consumo antropofágico amplificando a ameaça de existências reduzidas à funcionalidade.

O novo século potencializou o medo existencial, com as doenças psíquicas do século XXI: depressão, ansiedade, pânico, transtorno de estresse pós-traumático. O exibicionismo narcísico, a depreciação arrogante, o consumismo exagerado, podem ser vistos como sintomas associados ao medo da exposição e da humilhação, da derrota humana. Perpetradores e humilhados, ambos não respiram, um infla o peito, o outro deflaciona. O ambiente nos asfixia, na fumaça das queimadas, nos gases poluentes, nas opressões midiáticas, nos preconceitos, na vigilância coletiva; somos devorados pelas idealizações impossíveis de alcançar, por instintos mortíferos. Apavorados e à mercê de déspotas cuja destrutividade sem limite concretiza guerras, sequer percebemos que estas já existiam em nosso inconsciente.

Diante do impasse do rebaixamento civilizatório que gera polarizações doentias e, no extremo, perversas, recorre-se às utopias, o desejo do retorno ao paraíso, até de uma natureza paradisíaca. Ou seja, para se defender do intolerável, surge o sentimento de retrotopia, descrito por Bauman, ou a antecipação catastrófica distópica que impele a lutar pela sobrevivência em permanente estado de terror e de impotência. A defesa aqui é a paralisação e o anestesiamento, o que não impede de ser triturado enquanto o mundo colapsa.

Viver em tempos sombrios conduz à inércia arrasadora, à subjugação e à covardia moral. No dizer de Arendt e Brecht “Quando havia somente injustiça e nenhuma indignação”. Nestes tempos não cabe a neutralidade; esta, em última instância, reforça uma indiferença que perpetua a malignidade coletiva.

Retomando Camus, na Palestra proferida no Banquete Nobre: “Eles tem que forjar uma arte de viver em tempos de catástrofe, de nascer uma segunda vez, e então lutar, abertamente, contra o instinto de morte atuando em nossa história”. Há uma luta conjugada à arte de viver em tempos de catástrofe, que requer um modo diferenciado de fazer, de pensar, de sentir, de conviver, de superar expectativas milagrosas.

9 comentários

  1. deixei de me ater a textos impressos antes da eleição assim como evitar o WhatsApp para recomeçar a leitura em geral que recomeço hoje.
    Seu texto ( que nao se torná passado) é impecável. Não se tornará porque o futuro, apesar de vencer a oposição, – na realidade
    nao venceu – apenas demonstrou , uma vez por todas ,com toda clareza, qual a realidade. A divisão de dois pensamentos enraizados nas entranhas da terra há séculos seguidos. Deveríamos esperar apenas que L nos reúna novamente mesmo se nossas crenças e valores divergem. Vivemos a beira do holocausto e seu texto bem o retrata.
    Obrigada
    B

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