Sempre foi ele convicto ateu Isso pregando enquanto viveu Para agonia da mãe que o pariu E como tal, desse mundo partiu. Porém legou exigência descabida Injustificada por sua madura idade A dura missão aos seus exigida Ao corpo fado sem necessidade. Demandou deles pronta solução Nesse momento, bem inadequado, À incômoda e complicada questão: Aonde seus restos repousarão? Exigiu serem bem endereçados Sabendo-se, ele não abriria mão Estar em melhor jazigo sepultado Temendo de quais corpos cercado. Restaria sempre bem circundado? Ou preferível, sozinho enterrado? Como convicto ateu e obstinado: Melhor só que mal acompanhado. Foi um pesadelo ter que imaginar A que defuntos deveria ele tolerar Sabendo tê-los eternos aos lados Seriam eles despojos apropriados? Essencial então aprender primeiro Quem rejeitaria como companheiro. Vê-se que uma cruz jaz ao norte Mas, sendo ela de enorme porte Parece sinal macabro e estorvado. Ainda ao sul, não há melhor sorte, É outra mais, como anjo talhado Um triste arcanjo mal desenhado Obra de artista assaz incompetente Melhor algum menos deprimente. A leste repousa outro tombado, Tendo retrato frontal mal-acabado Da virgem mãe com o filho amado Porém, de semblante inconveniente Para gosto de agnóstico exigente. A oeste dá-se conta ser pior aí Pois surge em pedra estampada Embora, com o tempo apagada, Esculpida, a ínclita estrela de Davi Era só o que a nosso morto faltava! Aquele judeu, religioso respeitado Filho amado de rabino já passado. Seria heresia para ateu sepultado Tê-lo assim muito próximo ao lado Deixando-o defunto desmoralizado. Por isso, esperava-se algo melhor. Porém, tendo do islã, lua minguante Pairando acima o signo do levante Iria humilhá-lo e seria até pior. Uma só noite dessas abalaria Seu belo legado e douta sabedoria Se soubesse que fora ali velado Por noturna maometana confraria. Resultaria impróprio estar cercado Por fiéis religiosos embora recatados Mas inconvenientes ao ateu reputado Sabendo-o um exigente consumado. Temendo-se paradeiro malfadado Por serem os vizinhos repudiados, Decidiu-se: melhor tê-lo cremado. Mas, surgiu inesperado sério enfado: Assim subindo ao céu como fumo Em cinzas esvoaçantes, sem rumo Pegaria mal aos confrades ateus Descumprir sua promessa perene Feita a seus queridos e solene: Da intolerância a religiosos ao lado Pior seria ao paraíso partir esvoaçado. Por sua vez, seria bastante afrontoso Chocando-se com passado honroso Ter o corpo em chamas despojado. Tal insulto a ele não se cometeria Porque seria o cúmulo, triste ironia Sabendo-o intolerante enquanto vivia Apoquentar-se agora com cantoria Que na missa sempre o aborrecia Com anjos insossos esvoaçando Louvando em excelsos trinados De sons lúgubres e enfadonhos Fariam de seus outrora sonhos Pesadelos muito mal lembrados. Pior então a emenda que o soneto. Lembrando-se desse velho ditado, Argumentou-se com mais cuidado Como seria seu corpo despachado. Pensou-se logo tê-lo mumificado. Daí, bem maquiado, algo rosado, De tez morena, agora preparado Exposto em esquife envidraçado. Repousaria num plácido jardim À vista mostrado, quiçá respeitado De flores artificiais, bem enfeitado Certo que constantemente visitado. Mas, seria amado e lembrado assim? O que diriam dele tantos detratores? (Sempre aqueles hipócritas senhores, De templos, assíduos frequentadores). E o que fariam os severos credores? Penhorariam o caixão e até as flores? Da esposa saudosa, tantos lamentos Ao vê-lo impotente, como era antes. Mas diria com pesar a outrora amante: “Aqui jaz meu sedutor que galante, Contentava-me com paixão gigante”. Seria para defunto plena consolação. Mas, da sogra, religiosa e intrigante Ouviriam certo impropério maldoso: “Jamais foi virtuoso; apenas vaidoso” Devota praticante de santa religião Vingando-se dele com humilhação Faria em represália sórdida missão Impingindo-lhe assídua intrusão: Piedosas carpideiras entediantes. As tantas carolas, notórias farsantes Debulhariam as contas dos rosários Como fazem nos altares aos santos. Esvaindo-se elas em falsos prantos Orando a deus com toda devoção Manteriam a alma impura em danação Enquanto perdurasse a exposição. Além disso, deixaria vasta criançada Pela visão macabra, toda assustada. Então, para não se cometer desatino Buscou-se mais adequado destino. O defunto agradeceria por certo Se lançado com todo respeito À profundeza do mar aberto Ao repouso a que tem direito. Mas ninguém o inusitado antevia (O que em nosso mundo só ocorria). Pasmem todos, que lhe aconteceria Logo deparar-se com linda sereia. Lamuriando-se com o deus Netuno, (Absoluto senhor do oceano abissal Mais prazeroso do que o celestial) Convenceu-o ela a ressuscitá-lo Para em seus seios enlaçá-lo. Com ela usufruiu um gozo pleno Recebendo mais deleite e enlevo Do que os tidos no mundo terreno Ali regalando-se por tempo eterno. Pelos humanos vivos, logo olvidado Mas confortado e feliz, mergulhado Em águas azuis como doce morada Sem que nunca essa bem-amada Soubesse ter ao longo da vida sido Certo ateu, exigente e empedernido. Dele soubemos pela fogosa sereia Às vezes, vindo ao sol sobre a areia Entoando seu lindo canto matutino Grata àquele amor quente e genuíno. Fora ele ao deus Netuno convertido E o ateísmo, prontamente esquecido.
Eder, impressionante sua verve em versos maravilhosos, pomposos, deliciosos, ritmados e temperados com humor, ironia e graça!