Blog Clube dos Escritores 50+ Luciano de Castro Dentistas e coelhos

Dentistas e coelhos,
por Luciano de Castro

A vida vária é mais divertida. Essa hipótese advém do meu temperamento inquieto. Talvez esteja errado. Quando digo vida vária, refiro-me a um caminhar mais solto, um existir menos direcionado, que nos permita aceitar e surfar na pluralidade do mundo. Quando fazemos isso, criamos espaço para afinidades desatreladas da nossa ocupação principal. Aqui estou falando de prazer, de satisfação, mas os operadores do coaching (palavra moderna) ensinam que a atuação em duas ou mais carreiras é uma estratégia válida para aumentar a empregabilidade e o sucesso no mercado de trabalho.

Eu não entendo nada de coaching, mas me arrisco a elucubrar sobre a busca de um viver mais fecundo e feliz; e opino que diversificar os cenários pode ajudar. Parece que os médicos são mais afeitos a esse expediente. Jorge de Lima, Guimarães Rosa, Pedro Nava, Drauzio Varella e Karina Oliani são alguns famosos que associaram o uso do estetoscópio a outras aptidões. Jorge de Lima, por exemplo, foi clínico geral, vereador, tradutor, poeta, desenhista e pintor. Quando se mudou para o Rio, na década de 30, ele atendia seus pacientes em um consultório na Cinelândia que também funcionava como seu ateliê de pintura. O Dr. Jorge é um exemplo de como a prática profissional pode conviver e, mais que isso, enriquecer-se com outros saberes.  

E os dentistas? Também sabem ser multimedia? Alguns sim. No Rio, lembro-me de dois: Guinga, dentista e músico, e André Tartarini, dentista e escritor. A história do Guinga é curiosa. Ilustre desconhecido do grande público, o Dr. Carlos Althier é violonista e compositor. Aldir Blanc foi seu paciente e parceiro em muitas canções. Só que, diferente de Aldir, que abandonou a Psiquiatria, Guinga conciliava o consultório e a carreira musical. E não fazia isso apenas por dinheiro. Recentemente, ele declarou que se orgulhava da Odontologia e que a carteira do CRO (não a de músico) havia sido o seu salvo-conduto para receber a almejada vacina. Guinga se protegeu da Covid. O pobre Aldir não teve a mesma sorte.

Falar de Guinga me fez recordar uma carta ao editor (em espanhol) que escrevi há alguns anos: Odontología: ciencia o arte? No texto, eu respondi à pergunta argumentando que os dois conceitos não eram excludentes, mas complementares. A Odontologia era uma profissão privilegiada exatamente por ser uma ciência irmanada com a arte. De fato, há dentistas que constroem sorrisos como verdadeiros artesãos. A feição artística é inerente à Odontologia. Falta-lhe ampliar o olhar. Falta acercar-se das outras artes e dialogar com elas. Simbolicamente, o que Guinga fazia era uma amalgamação manual das duas artes, a música e a Odontologia. Ferreira Gullar escreveu: “A arte existe porque a vida não basta.” Concordo com o poeta: arte é fundamental.

Eu citei dentistas que conseguiram transpor os limites do céu da boca, mas acho que esses ainda são raros. Em geral, o dentista padece do que chamo de comportamento cunicular: age feito um coelho habituado à sua toca. Talvez isso possa ser explicado, ao menos em parte, pelo determinismo de meio. Desde a faculdade, o dentista é condicionando a trabalhar em espaços delimitados — o box da clínica, a boca do paciente, a cárie, o preparo cavitário, a bolsa periodontal, o canal radicular — e com o tempo ele vai se afeiçoando a essa exiguidade. Seria como um vício ocupacional. Suspeito que essa visão treinada pra ser específica e focada possa atrapalhar ou mesmo impedir que o profissional de Odontologia desperte e desenvolva outras habilidades.

 Desde muito jovem, eu identificava em mim uma queda para a literatura. A Odontologia e a docência soterraram esses desejos. Durante muitos anos, eu achava que não tinha tempo para leituras não científicas. Julgava que se o fizesse, estaria traindo a minha profissão e a santa ciência. Apenas recentemente, eu me dei conta de que, pelo contrário, a diversidade de saberes me tornava melhor como profissional e como pessoa. Percebi que não era pecado ler um artigo de Patologia e depois, um poema do Bandeira. Foi um alívio e uma alegria perceber que as minhas paixões poderiam conviver sem se digladiar.

 Finalizando o colóquio, mantenho a tese de que a vida confinada ao ofício nos deixa tortos, enviesados, feito um barco adernando pra bombordo ou estibordo. Com isso, não quero dizer que os meus colegas dentistas precisem ter outra profissão, mas simplesmente abrir a mente pra novas emoções: cinema, música, poesia, artes plásticas, esportes, dança. Acredito, inclusive, que isso nos torna mais humanos, mais sensíveis na prática clínica. Para navegar com equilíbrio, entendo que a assimilação de outros pensares e interesses seja uma forma de deixar o barco mais estável e mais preparado para cruzar esse oceano inconstante e misterioso que é a vida.

*Luciano Alberto de Castro, dentista e escritor

  Goiânia, agosto/21

6 comentários

  1. Muito lúcida a reflexão que, claro, vale para outros profissionais. Abrir a cabeça para outros saberes é fundamental e, sem dúvida, ajuda no próprio desempenho profissional. Eu, como engenheiro, assino embaixo das reflexões de Luciano.

  2. Os médicos de Goiás têm até uma revista chamada Lado B, exatamente para mostrar que existe vida além da medicina. Mas o aprendizado de hoje foi o “cunicular”. Por um minuto achei que fosse outra coisa.

  3. Muito boa crônica sobre medicina, odontologia e arte e histórias empolgantes. O espírito aprecia a amplidão, e o coelho na toca? e os dentes grandes e brancos dos coelhos?

  4. Tanta verdade, Luciano. A vida acadêmica odontológica quase soterrou meus desejos artísticos por muito tempo. Mas eis que eles ressurgem das cinzas, das entranhas e calabouços e certamente me tornam um humano melhor.
    Parabéns pelo texto!

  5. Luciano, gostei muito. Trabalho com arte e psicanálise. Tenho mestrado e doutorado em comunicação e semiótica. A tese e a dissertação foram publicadas: “A palavra in-sensata, poesia e psicanálise”; e “Corpo-de-sonho, arte e psicanálise”. E todas as artes estão juntas. Ciências e artes também. Vou reler seu artigo. Abraço forte

  6. As reflexões do odontólogo, docente em estomatologia e escritor Luciano de Castro, trazem lucidez ao abrir fronteiras para a plenitude do ser
    enquanto profissional e artista das letras e sentimentos.
    As emoções bem trabalhadas em prosa ou versos dão tons vitais e de prazer ao labor. No assazonar da vida somos aprendizes, nas afinidades com amigos poetas transcendemos de obstáculos e friezas aos rubros versos. Gratidão!

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