Assim se entendia por gente: defensora de costumes e da moral. Desde pequena tinha peculiar senso de justiça: aos quatro anos esmagou um besouro com sua sandalinha de contas porque estava em cima de outro. Aos sete correu para o quarto quando viu uma menina pobremente vestida com sua mãe e irmãos pedindo esmola. Escolheu com cuidado a boneca sem perna e olho vazado e lhe entregou sorridente. Aos quinze denunciou a encantadora rainha do baile por estar aos amassos com um rapaz no pátio da escola.
Fez uma vida digna, casou com rapaz de boa família, teve cinco filhos, os educou bem: três homens de boa profissão e renda, duas mulheres ótimas mães de família. Após criar os filhos se dedicou a causas sociais, participava de quermesses da igreja, de grupos de caridade, arrecadava fundos nos natais para dar brinquedos às comunidades carentes e outras ações beneméritas. Era tida como caridosa, altruísta e moralmente impecável.
Por política pouco se interessava; ouvia, distraída, as conversas de seu marido com os amigos e filhos. Por vezes discussões ríspidas com um deles que se voltara para o comunismo; nas melhores famílias há ovelhas desgarradas, pensava. Começou, entretanto, a mostrar curiosidade com um movimento nascente, que não sabia ser movimento ou partido, principalmente porque a figura do líder despertou nela uma sensação que não sabia definir, uma palpitação, ardor vaginal, leve tremor de menina moça.
Bastava vê-lo na televisão para sentir-se alheia ao resto, até aos netos que tanto amava. Começou a participar de comícios, passeatas, a proferir juras de lealdade à nação: o movimento defendia a moral, a nação, o futuro descontaminado de impurezas. Algumas amigas lhe diziam que exagerava, outras a elogiavam. Sentia-se, na maturidade, renovada, elevada, tinha um objetivo, era parte de algo maior.
Começou a sonhar com ele, agora seu Presidente, achava graça no seu olhar maroto e esquivo, na sua fala desengonçada, nos seus gestos bruscos e viris, principalmente quando o via paramentado de couro ou com farda. Devaneava, estava em seus braços, suspirava …
Quando a primeira dama sofisticou seus trajes provincianos com vestuário parisiense, começou a imitá-la. Em suas fantasias se via ao lado dele em cerimônias oficiais, trocando sussurros. Os dias eram prazerosos e eis que veio uma praga, denominada pandemia. Terrível e devastadora, muita gente morreu, até um tio de quem gostava um pouco. Ele fora mulherengo na juventude, teve filhos ilegítimos, talvez tenha sido punido pela mão divina.
Ouvia críticas ao ministério da saúde, à cultura do país, à devastação ambiental, tudo ecoava de longe; claro que temia por sua família, mas achava que contavam com a proteção da providência e da vida regrada que tinham. Quanto ao filho desgarrado, felizmente estava morando em outro país. Quando surgiram as vacinas ouvia os alertas de seu malefício; somente se vacinou por insistência do marido que, apesar de duvidar da ciência e de cientistas fora da realidade, tinha muito medo do vírus.
Quando a pandemia diminuiu, dedicou-se novamente a endeusar seu presidente e aclamar sua reeleição. Vestia verde e amarelo – além dos pretinhos de grife -, pintou o cabelo de loiro. Participou da maior passeata que já vira, uma onda de felicidade com desconhecidos que oravam junto ondulando bandeiras.
Houve uma votação, sem saber muito bem em quem estava votando e por que, anotou nomes em uma lista; lembrava vagamente de um ministro da saúde mal falado, sabe o povo como é … Esse homem que o presidente afagava, gordinho e bonachão não podia ser mau. Deixou gente morrer sufocada, sabotou vacinas? Invencionices. Esse outro lucrou na surdina com madeira brasileira, aproveitou-se de incêndios? Ora, madeira temos demais, incêndios sempre ocorrem.
Confiava plenamente no idolatrado, faria o que lhe pedisse, a ela, totalmente sua. Vendo sua alegria nas notícias daquele dia, sonhou com ele em encontro selvagem de mordidas e apertos em cima de uma motocicleta, nua, envolvida em uma bandeira brasileira molhada de suor, esperma e fluídos; teve o maior orgasmo de sua vida.
Qdo ele sofreu a facada, assisti a uma cena inusual. Moro em frente ao hospital Albert Einstein para onde ele foi trazido, de helicóptero, que dava voltas antes de aterrisar.
Repentinamente minha rua se encheu de automóveis dirigidos por mulheres, um buzinaço infernal! . Elas se debruçavam na janela (todas loiras) e aos urros gritavam Mito, Mito, Mito! Muitas choravam…
Muito bem observado, recomendo rever um filme magistral: “Um dia muito especial”, que retrata as mulheres apagadas que não aderem à histeria coletiva, mas não tem meios para sair
Uma ode às impolutas e combativas tias do Zap. Gostei especialmente do final apoteótico. Parabéns, Liliana.