Antes de começar, clique no play para acompanhar a leitura com o som do piano de Martin Tigvall tocando In Memory
David lia o jornal depois do café da manhã quando Aline entrou na sala, embrulhada em um roupão.
– Bom dia, dormiu bem? disse David.
– Sim, melhor do que pensava.
Desculpe, fui ao banheiro e peguei o seu roupão, respondeu Aline, apertando-o contra o corpo.
– Poderia vir tomar café sem nada, até que seria agradável.
– Você me chamou para passar a noite com você, não para andar pelada pela casa, ainda mais com esse friozinho.
-Tem razão, desculpe. O que quer de café da manhã?
– Só café puro, por favor.
– Ok, vou preparar um expresso.
Enquanto esperava, Aline pensava: sujeito estranho, bonito, delicado, mas esquisito, geralmente, as melhores respostas vêm de perguntas diretas, vou arriscar.
– Uma pergunta: deitei e passei a noite abraçada com você, notei que estava excitado, ou falando melhor, no ponto, e, você não fez nada. Algum problema comigo, com meu corpo, medo de doença ou coisa assim?
– Não, não, nada disso. Você é muito bonita e, sei, saudável. Só quis fazer um teste comigo mesmo.
– Teste, que teste?
– Queria ver se conseguia controlar o meu desejo.
– Como assim?
– Nessa minha vida acordei vezes demais com mulheres que não queria nem ver. Classifico isso de desperdício, não quero mais. Foi um bom teste, valeu.
Aline… é um bonito nome, seu verdadeiro ou de trabalho?
– Já disse quando falamos por telefone, e repito: não sou prostituta, sou estudante e tenho um pequeno grupo fechado com cinco colaboradores que me ajudam e eu retribuo com companheirismo, quando precisam. Inclusive você foi indicação de um deles para a vaga existente.
– Entendi, como e com quanto vou colaborar?
– Vou passar minha conta e você faz transferência de quanto quiser, desde que tenha quatro dígitos, é lógico.
E seu nome é David mesmo, mora sozinho neste apartamento enorme, não tem família?
– Sim, David Volver, esse é meu nome, sou só, não tenho amigos, parentes, se ainda os tenho, estão esquecidos há muito tempo. Quase não saio, trabalho aqui em casa, tenho uma vida comigo mesmo e, posso afirmar, gosto de ser assim.
– Não tem ninguém, amante, namorada?
– Não, não tenho ninguém e não quero ter. Em verdade, há tempos tive uma namorada que toda hora queria discutir a relação. Falava de um nosso futuro, casamento, filhos etc. Um dia, em uma lanchonete, quando ela percebeu que eu não estava prestando atenção no que dizia ficou irritadíssima, disse quase gritando: “você é um egoísta filho da puta”.
Paguei a conta, levantei-me da mesa e antes de sair disse que ela tinha razão, eu era mesmo um egoísta filho da puta. Fui embora, nunca mais a vi. A partir daí me descobri misantropo.
– Isso tudo pode ser um grande erro, a solidão é muito, muito triste. Digo, porque, apesar de tudo, sofro com isso. Não dá para viver assim.
– Até hoje, Aline, erros, se os tive, não aprendi nada com eles. E a solidão pode ser terrível, mas depois de um tempo acabamos aprendendo a viver com o inaceitável.
– Bem, essa conversa está ficando pesada demais, preciso ir. Vou me vestir já volto.
– Espere, quero ver você se vestir.
– O que é isso? Tara nova? Os homens gostam de ver as mulheres se despindo, não se vestindo.
– Não, disse David rindo, nada disso. É que de vez em quando, costumo escrever sobre relações. Ver mulheres se despindo, já vi demais. Agora vê-las se vestindo, só na imaginação.
– Certo, vamos lá. Cada louco com sua mania.
David voltou do quarto, admirado como algumas peças de roupa tiradas de uma mochila, transformaram aquela mulher sensual que chegara na noite anterior em uma estudante. Abriu a porta do elevador para Aline, que disse:
– Vai me ligar para continuarmos? Gostaria, você me despertou desejos.
– Não sei, talvez, mas não esqueça:
Sou um “egoísta filho da puta”.
Gostei muito do seu conto, Leo. Aposto que a Aline volta.
esses contos musicados são ótimos! e o casal tão desencontrado no breve encontro, assim é o que é …
Que jeito interessante de tratar do amor e seus truques! Parabéns, Leo.
Muito bom conto. Mas é raro. No caso nós homens já vamos partindo pra dentro e só depois pensa em alguma coisa romântica pra se sair por cima.
Mas o David sabe aproveitar as coisas boas de um jeito bom.