Das águas
Cresci entre tijolos, picaretas, cimento fresco, marretas, fios e novas medidas para que velhas portas e janelas coubessem em novos vãos. Permaneci por um tempo entre um monte de cimento sem liga com a água. Mesmo quando paredes são derrubadas, as sombras não desaparecem junto com o caminhão carregado com o entulho. Some o branco, mas imprime-se o perfil de silhuetas recortadas. Nestes espaços mutantes, nos quais a sombra das reformas molda lembranças, as câmaras escuras são as principais formadoras dos escombros da minha memória.
Nas transformações, tanto da casa como de minha alma, as câmaras escuras emergem em branco e preto, misteriosas, de agradável temperatura. Nos grandes tanques de concreto, onde os filmes eram revelados em cilindros de aço inoxidável e as bacias de química aguardavam o papel que revelaria lentamente a foto já projetada por uma máquina, o ampliador, eu aprendi o processo da transformação que mais tarde viria a ser o caminho para construir o meu destino. Hipossulfito, era o nome da mágica a partir da qual se processava o concreto da realidade, ali representado por uma fotografia.
Pela manipulação do papel imerso no revelador, a alquimia dos magos se concretizava sob a batuta da precisa pinça do meu pai fotógrafo. Aprendi a enrolar no carretel, no escuro, o filme já exposto. Com meu pai, vi surgir dessas águas o preto e o branco, o cinza claro e o escuro, as luzes e as sombras, o desejo de escurecer um canto ou de clarear outro, deixando mais alguns minutos o projetor sobre algumas áreas da foto, cobrindo a outra com a mão. Foi com meu pai que reconheci o drama nos olhos de um fotografado ou a beleza de uma curva arquitetônica. À luz da escuridão, as câmaras escuras tornaram-se os espaços claros da minha alma.
Processo alquímico misterioso que se faz no escuro, e no silêncio, transformando a matéria e a alma. Linda crônica Bettina.