(Com todo o respeito ao prezado leitor, por favor, peço que não tenha pressa (apesar desse mundo cada vez mais veloz em que giramos). É por vezes necessário (para o desenvolver da narrativa, o andar da carruagem) que alguns esclarecimentos sejam feitos, complementos que situam ou ampliam a cena no tempo e no espaço, trazem e incorporam detalhes (ah! Os detalhes! Fazem toda a diferença, não?).
Pois foi só falar de carruagens, tempo e detalhes que a memória me trouxe fragmentos de conversas com minha avó Glória (portuguesa da gema, emigrou para o Brasil com vinte e poucos anos). Ela gostava de maneira particular de relembrar suas viagens para visitar a terrinha (isso quando a situação melhorou, depois de muito ralar com meu avô). Falava sempre de Santiago e São Romão, as aldeias de origem. Eram os pontos de partida, dali faziam incursões em todas as direções (vestígios da índole exploradora dos navegantes lusos?).
(Cheguemos mais perto da cena: tarde amena de outono, um solzinho entrando pela janela do quarto, microclima de aconchego.)
Ela ia engatando suas histórias…
– Sempre que passávamos em Lamego seu avô dava um jeito de almoçar no Ferreirinha, um velho conhecido. Serviram juntos no exército. (Já te contei aquela história de quando teu avô estava a ficar de sentinela à noite, de madrugada? Era aquela escuridão em frente ao quartel. De repente ele percebeu um movimento, alguma coisa se mexia. Um vulto, não dava para saber o que era:
– Quem vem lá? Quem vem lá? Teu avô gritava, mas ninguém respondia. E o movimento continuava, parava um pouco e recomeçava. Quem vem lá? Gritou mais uma vez e nenhuma resposta. Não teve dúvidas, pregou fogo. O movimento parou. Seja lá quem fosse deve ter fugido, ele pensou. Quando amanheceu foram verificar e acharam o burro morto, baleado.)
– É, já tinha me esquecido dessa história…
– Pois é, mas íamos sempre à Lamego nas viagens que fizemos à Portugal. O restaurante ficava na praça D. Pedro IV (é, o Pedro I aqui do Brasil lá ficou Pedro IV, tu sabes). Nessa praça morava também um primo do tio Batista que conhecíamos desde criança (nossas aldeias eram próximas, já conhecestes quando foi lá, não?)
– Sim, sim…
– Então, o nome dele era Alberto. Gostava muito de caçar. Juntavam uns rapazes e iam lá para os lados da Serra da Nave caçar lebres (tem um livro do Aquilino Ribeiro sobre a Nave, tu conheces? Foi um grande escritor português…). Voltavam de lá com algumas lebres. Eu não gostava daquilo, mas teu avô sim, apreciava (acho que no fundo era uma desculpa para aqueles homens tomarem seus copos de vinho)
De repente ela, que já beirava os noventa anos, fez uma pausa. Parecia viajar por outras lembranças e, por um breve momento, supus que iria mudar de assunto. Só que não.
– Pois então, o Ferreirinha ficava na praça D. Pedro IV (sabias que esse nome Pedro era muito usado por lá? Toda família tinha ao menos um Pedro. Era um costume forte. (Lembrei agora do padre Pedro Domingues, muito sério, enérgico, fazia cada sermão, tinhas que ver (foi ele que substituiu o padre Firmino (aquele que foi pai de oito filhos. Era muito bom, mas se via um rabo de saia…))). Às vezes ficávamos sentados na praça antes do almoço. Assim como estamos agora, tomando um pouco de sol e conversando, conversando. Que saudades! Sempre havia crianças correndo, o jardim era muito bem cuidado. Acabávamos encontrando algum conhecido, perguntavam do Brasil, da viagem. Quanta coisa, quanta coisa…
E sabes qual era o prato principal do Ferreirinha? O cabrito assado no forno, com cebolas, alho e toucinho. Uma delícia. (Lá na aldeia, nas festas, faziam o cabrito assado. Meu pai era especialista. Vou te contar como ele fazia…)
– Vó, desculpe interromper, mas, por falar em comida, já estão chamando para o almoço.
– Ah, então vamos, vamos. Depois eu conto o que aconteceu naquele dia quando acabamos de comer o cabrito no Ferreirinha…
Pronto, hoje fico por aqui. (Opa, me desculpem. Por falta de prática, já estava esquecendo de fechar o último parêntese). Aqui me fecho).
Histórias dentro de histórias. A avó contadeira contada pelo neto. E os parênteses…E outro dia foi o dia dos avós. Histórias contadas e cantadas. Embalando a gente.
Bom nos lembrar, Carlos, que parênteses da memória estão sempre disponíveis; tão bom que sejam abertos, que viagem!
Muito original o uso de parênteses e a contação que abre a cada fato lembrado, a transmissão afetiva entre gerações, de avós a netos, precioso.
Muito criativo o seu conto, Carlos. Gostei demais desses parênteses sobrepostos( e complementares). Literatura solta e viva. Parabéns!!
Maravilhoso. Já estava embarcando na história mas, preciso esperar o restante para depois do almoço. (Coisas de avó).
Parabéns Carlos. Muito bom de se ler.
Nossa, lembrei muito da vó Gloria. Você soube descrever exatamente o jeitinho que ela contava as coisas! Adorei o conto!