Clube dos Escritores 50+ Sergio Zlotnic Maldiçao

Crônica em primeira pessoa
Maldição! por Sergio Zlotnic

Aconteceu comigo fato bastante desagradável. Relato a seguir:

1- Apoiado em forte intuição, recentemente, joguei na loteria: Mega da Virada. Do ano. Da década. Escolhi seis números, preenchi o cartão, fui à casa lotérica, formalizei a aposta. Máscaras. Protocolos. Tudo muito bem.  

Tive o cuidado de colocar o CPF no comprovante, pra que ninguém [além de mim] pudesse sacar o prêmio gordo.

Planejei algumas iniciativas com ele [o prêmio]. Trezentos milhões. Socorro a amigos falidos, isso é certeza… [sou pessoa boa].

Aguardei, com paciência, em silêncio, pelo sorteio, na data prevista: primeiro dia do ano [da graça de 2021]. Fui à internet. Conferi o resultado e…

Não ganhei!

Perplexo com a falta de justiça no mundo, senti a perna esquerda falsear e me sentei numa poltrona. E me pus a refletir. Profundamente.

Senão, vejamos.

2- Uma aposta errada pode estar certa num outro sorteio, tal qual a máxima que reza que um relógio quebrado está correto pelo menos duas vezes ao dia.

Os números que com carinho escolhi talvez já tenham saído num sorteio anterior [mesmo que na Idade Média ou na Pré-História] – ou num sorteio ainda porvir. Ou ambos. Aqui ou alhures. Ou ambos também.

Isto deve ser verdade. E, mais do que deve ser verdade, deve ser possível. E, mais do que possível, provável. E, mais do que provável, fato!

A convicção cresceu tanto, até desembocar, robusta e intumescida, num constructo.

3- Matemáticos confirmam, objetiva e irrefutavelmente: num tempo que tende ao infinito, qualquer aposta há de ser acertada; qualquer combinação de seis números, em sessenta possíveis, um dia, será sorteada.

Ainda, além disso, eles [os matemáticos] sabem precisar até mesmo em quanto tempo a constelação exata se armaria: dentro de qual envergadura temporal tal fenômeno necessariamente se daria. E, convenhamos [e estejamos de acordo desde já], tempo é o que não falta ao universo.

Quaisquer seis números hão de, enfim, quase numa revelação epifânico-mística, se configurar e se materializar e se mostrar a nós, em um ponto determinado espaço-temporal [assim como a vinda do Messias].

Kairós não cabe em Chronos [antes, vice-versa].

Sim, eu penso grande [desde pequeno].

A sorte é uma questão de acaso determinado: ela vem – só não sabemos quando chega. Sorteio do sorteio. Estamos todos enfiados em uma imensa gincana.

O deus dá, o homem distribui.

4- Sem delongas, salto direto à conclusão.

O que devemos reter do acima exposto [com os seus vários sentidos ocultos, ontológicos e físicos e filosóficos e metafísicos, notem –, teológicos inclusive] é tão somente a sua moral.

Há sempre um acerto no equívoco. O erro é um acerto que migrou de sua temporalidade, nos confins da galáxia, e aterrissou bem no meu cartão da lotérica.

*

Levanto da poltrona – e o peso da equação me deixa tonto. Vertigem: saber demais é perigoso [por isso evito a Kabbalah].

5- O diabo é que agora terei de continuar jogando, eternamente capturado pelos mesmos números encantados, pra não correr o risco [que é certo] de ver minha escolha enfim sorteada, sem que, no entanto, eu tenha me lembrado de apostar. O que seria, isto sim, O Grande Azar.

Maldição!

*

6- À guisa de pós-escrito, atentemos, neste ponto, para a quantidade de gente que garante ter sido Cleópatra em vidas passadas e encarnações pregressas.

Há erro matemático aqui?

7- “Tentar de novo; falhar de novo; falhar melhor!”, disse Beckett…

Post scriptum:

No-só-depois!

Quando escrevi esta crônica/conto, no início do ano, imaginei todas as alternativas possíveis, num raio de tamanho cósmico.

Porém, a realidade supera a ficção. Sempre!

Na ocasião, o azar supremo me parecia ser: escolher seis números certos – e esquecer de jogar.

Entretanto, atentemos para o que houve, na verdade, na loto [mega sena] em questão.

Está nos jornais:

O acertador escolheu os números. E jogou (não, ele não se esqueceu de jogar).

Tudo muito bem.

E ele ganhou! Uau.

Mas…, ironia, não foi retirar o prêmio. Dormiu no ponto.

E acordou tarde demais: mais de 90 dias depois do sorteio…

Expirado o prazo que a Caixa Econômica dá para que o sorteado reclame seus milhões.

O caso segue na justiça.

Quem viver verá…

[talvez não haja limites para o azar]

A ilustração desse post é cortesia de Tomás Millan.
Tomás Millan é arquiteto e urbanista formado pela FAUUSP. Em seu percurso, passou também pela Alvar Aalto University, na Finlândia, e pelo Ateliê Morito Ebine, em Santo Antônio do Pinhal. Marceneiro, investigador do fazer, da técnica e da linguagem. Trabalha hoje no escritório MMBB arquitetos.

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15 comentários

  1. Sérgio, suas circunvoluções cerebrais-mentais são fantasticamente cativantes. “O erro é um acerto que migrou de sua temporalidade”, genial! libera parcela de culpa. Mas serve também para alguns psicopatas que veem erro nas eleições ou antecipam que haverá erro – cálculo temporal, mas acho que isso é outra história

  2. Sergio, seu texto tem efeito euforizante. Aguça meu humor, espicaça minha graça adormecida, atiça minha inteligência pasmada, mobiliza meu afeto por você, acelera minha impaciência pra gente poder aglomerar novamente.

      1. Sergio queridísimo, já faz 8 meses que seu texto foi publicado aqui no Fifties.
        Confirmo tudo o que escrevi da primeira vez. Reli o seu texto sorrindo.Um verdadeiro refrigério.
        Ai que saudades!

  3. O site está dizendo que já escrevi o que está abaixo, mas não é verdade.
    Vou tentar novamente: Sergio, seu texto tem efeito euforizante. Aguça meu humor, espicaça minha graça adormecida, atiça minha inteligência pasmada, mobiliza meu afeto por você, acelera minha impaciência pra gente poder aglomerar novamente.

  4. Sérgio, seu texto é divertidíssimo e envolvente, e extremamente instigante para um racional como eu. Se a possibilidade de você ser um ganhador da mega-sena no futuro for igual a minha (considerando o universo homogêneo e justo a todos), então eu precisaria também escolher seis números e jogá-los semanalmente. Da mesma forma, isso poderia acontecer com, digamos, cinquenta milhões de brasileiros que eventualmente jogariam (estou pensando somente em um quarto dos habitantes). Assim, inferindo ao infinito, você resolveria a questão da pobreza, pois como confessou, ajudaria seus amigos falidos (eu também o faria e acredito todos os ganhadores). Ou seja, teríamos todos os brasileiros ricos. Grato pela esperança. P.S.: acho que você está bajulando o deus errado. Deveria se ater à mãe de Kairós: Tyche, a Fortuna.

  5. Sergio, “Kairós não cabe em Chronos [antes, vice-versa].”
    A sorte existe, ela (sempre) vem…
    Só não sabemos quando.
    Li esta cronica algumas vezes, e cada vez é a primeira.

  6. Na primeira leitura nao entendi direito como sendo um texto divertido e sim uma teoria metafisica sobre a sorte.
    Relendo hoje, passei a gostar e muito , mas passei a admirar ( e porque nao invejar) a sua capacidade de criaçao.
    Jogo na Loteria e só consigo rezar para ficar rica e assim distribuir o resultado; ( guardaria um tanto para mim poder gastar a vontade e ver o concreto e o abstrato ( e tudo o que isso quer dizer) do mundo para aprender e inspirar-me para escrever mais e melhor!
    nao nos deixe a pé – sem seus escritos aqui!
    bjs

  7. Serginhole, com a alegria da surpresa de te encontrar em meu e mail,
    quero dizer bem baixinho, só
    pra você: a sorte grande existe !
    Texto de sabedoria agri doce, musicado pelo humor szzzz, que me fez ter esta profunda ( e rara… 🤔) reflexão : a sorte pode sim, se repetir , ela me chegará com teu proximo texto . Abraços da Janetele

  8. Serginhole, ( com o devido perdão pela intimidade) . Sorte é facil de conseguir , sem maiores conjecturas metafisicas, alquimicas e quetais. Sorte: ter recebido este texto ! Enquanto houver humor
    sagaz, humor com brilhos que só a inteligencia comporta, , ou seja, enquanto houver textos como este teu, estamos salvos em nossa humanidade. Que sorte a minha! Como nesta eu acredito… aguardo tua proxima presença por aqui. Janetale ( te perdôo a intimidade! )

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