Meu caro primo Covid-19.
A ciência o aguardava há muito! Afinal, bichos de nossa espécie existem desde tempos imemoriais. Povoam os hominídeos, talvez há alguns milhões de anos, e os selecionaram com muitas mutações para abandonar quatro mãos, deixando de viver pendurados nas árvores africanas para serem bípedes, usando as patas dianteiras para fazerem todas as artes, inclusive a de produzir maneiras de nos eliminar.
Graças a sua família infestando os antepassados ao longo da existência, várias mutações – as suas e as dos hominídeos – passaram a resistir a tantos de nós que evoluíram para serem os humanos de hoje. Bichos danados de resistentes, nós e estes humanos. Os sáurios, antepassados deles, não parecem ter sido tão felizes: se acabaram com uma breve escurecida dos céus por causa de um meteoro; os humanos sobreviveram a várias glaciações, outras intempéries, brigas entre eles mesmos, e quantas, e bichos estranhos prontos para serem hospedados por eles. Assim têm feito com a peste bubônica, tuberculose, lepra, sarampo, caxumba, rubéola, poliomielite, febre amarela, chicungunha, sífilis, enfim, toda nossa imensa família infectante que honramos. Não preciso desmoralizá-lo mencionando todos de nossa linda tribo, mas até um parente nosso recente, HIV, que os aborrece com tanto gasto, não consegue acabar com o bicho homem. Desculpe-me meu caro: sairás desmoralizado! Não haverá incúria política – embora sempre tão abundante por aqui – que mantenha seu alento. Lembre-se que houve um tempo que os imperadores romanos atribuíam a malária aos ares de pântanos infectados, outros, a tísica à humidade, a raiva à saliva de lobos, a varíola a um deus punitivo, a febre amarela aos maus ventos e achavam que os insetos não poderiam transmiti-la por serem tão pequeninos para ousarem carregar uma doença tão grave (Oswaldo Cruz, V. era um tonto..), mas surgiu um cubano muito vivo entre os que sabiam dançar salsa e rumba, chamado Juan Carlos Finlay, que mostrou a maldade do mosquito. Naquele tempo os americanos começaram a tomar conta do mundo e levaram toda a fama da descoberta – Fidel não existia então para contradizê-los – mas acabando com o mosquito, os irmãos humanos do norte deram um pontapé no bum-bum dos franceses e fizeram o canal do Panamá, o que encurtou tanto a distância entre suas esquadras e as praias da América Latina que permitiu a revolução salvadora de 1964. Devem os brasílicos então muito a este cubano desconhecido: Finlay, não a Fidel como pensavam…
Mas meu caro Covid-19: um capitão aqui andou dizendo que V. só serve para fazer histeria. E não é que ele tem razão? Explico. Preste atenção. Realmente há os que acreditam nele, mas por incrível que pareça o tal capitão sabe jogar com a sorte. Se seu estrago for pequeno todos continuarão acreditando nele como mito, e mais ainda, repetindo que mito nunca mente o que obrigará os nativos a reelegê-lo!
Mas, deixando o capitão de lado, V., Covid-19 é muito micho e vou mostrar por que. V. está entrando numa terra abençoada em que sua maldade não vai dar nem prá coceira. Aqui há maldades muito mais eficazes do que a sua, querido primo. Ano passado 41.635 nesta terra morreram assassinados; a conta dá 114 por dia. Os machões mataram 1.222 mulheres. Duvido que V. bata este número: és macho, mas não tanto quanto pensas. Isso não é nada perante os que morreram atropelados: 48.300, e ainda os 12.600 sofredores que deram cabo à própria vida num só ano. São aqui 210 milhões à sua espera.
V. até hoje (20 de março de 2020) só matou 3 ou 4 e pegou 418; o número vai aumentar bastante, mas tem que aumentar muito, muito mesmo, para o capitão se convencer que não é histeria! Mixaria mesmo. Estás ainda longe dos 366 que se foram pela dengue. Será que V. vai conseguir levar mais de mil pro buraco? Afinal no ano passado, nessa terrinha abençoada, 193.534 tiveram malária; não sei quantos se foram por ela, mas aposto que V. vai ficar longe deste número (para baixo é claro!)
Meu querido Covid-19: V. já apareceu aqui muito desmoralizado. O mundo já te conhece e está deixando V. sozinho pois foi denunciado em tantas terras antes desta que hoje não pegas de surpresa o país do futuro. Podes fazer todo esforço, mas és fraquinho, só fazes barulho, e como fazes! Tchau primo…
Lembranças dos seus parentes, virus muito mais eficazes…. Mas à distância. Em dúvida não damos beijinho, nem abraços.
Dos queridos primos hepatites A, B e C.
PS: querem acabar com V. usando álcool-gel e conosco proibindo álcool por causa do fígado. Esquizofrênica esta medicina dos humanos….
Deliciosa carta de família que nos ensina, atemoriza e aquece o coração .
Não fosse o gosto de ler esta carta, ia morrer de desgosto, não fosse o prazer, ia morrer de desprazer, não fosse o riso, ia ser o choro, não fosse a ternura, seria só realidade.
Sylvia: minha carta de brincadeira virou poesia na sua boca…