Convite para jantar e o Dia Mundial sem Carro, por Eder Quintão

O convite
Ontem fui admoestado por minha esposa (ainda uso estas palavras arcaicas) por não ter participado do jantar do Clube dos Escritores para o qual, reconheço, eu fora convidado. Houve dois motivos, que explico. O convite deveria, no meu caso, ser endereçado “Ao amigo do Clube dos Escritores” pois tenho amigos ali e outros que gostaria de conhecer por apreciar muito o que escrevem. Não sou escritor; apenas leitor. Ou confundiram escritor com escriturário, ou com alguém que escreve receitas médicas, mas por estes deslizes eu os perdoo.

No Dia Internacional dos Sem Carro, melhor correr para casa
O outro motivo foi o “Dia Mundial sem Carro” em que descobri estar após levar uma hora e quarenta minutos para ir (de carro) da Praça das Guianas (Jardins) à avenida Higienópolis, onde resido, e aonde cheguei às vinte horas e trinta minutos, decidido, após esta provação, a respeitar sem questionamento a comemoração do tal dia.

Estivera no início da tarde na Faculdade de Medicina, à avenida Dr Arnaldo, para uma reunião científica. Tive dificuldade para estacionar lá estando o pátio lotado, principalmente por carros dos estudantes, mesmo neste dia da limitação automotora anunciada. Ali ninguém se dera conta de comemorar a data. Não conseguindo uma vaga no estacionamento dos estudantes, esgueirei meu carro no espaço bem menor reservado aos professores. Nessas oportunidades percebo quão ingrata a vida dos estudantes de medicina da USP. Em esmagadora maioria procedem das melhores escolas privadas de São Paulo e, adentrando a USP (por inegáveis méritos, importante que se diga), repudiam com veemência terem que pagar pela educação superior. Preferem a comodidade do sustento pelo bolso dos contribuintes. Mas que não ousemos reclamar: poderiam exigir que lhes provêssemos o combustível para chegarem ao estacionamento.

De lá cometi a imprudência de levar uma netinha ao Clube, e em seguida de participar às dezoito horas de uma breve reunião administrativa em minha clínica. Descobri o tamanho de minha delinquência automotora apenas ao tentar chegar em casa, o que só consegui depois de voltas e reviravoltas guiado por um fluido misterioso chamado Waze. Confesso que não foi totalmente inútil este percurso: passei por ruas e praças que me eram completamente desconhecidas. Mas, a prudência própria da idade avançada convenceu-me permanecer em casa depois desta façanha.

O seres de Marte, as criaturas de quatro pernas redondas e os dias de festa
E foi aqui que passei a matutar sobre estes dias especiais, como o dia dos “sem carro”. Recordo-me de um antigo desenho animado em que marcianos descreviam a conterrâneos do mesmo planeta a visita que fizeram à Terra. Acharam-na sui generis. Habitam-na estranhos seres que passam por extensos corredores se locomovendo sobre quatro pernas redondas e que giram, às vezes mudando o percurso, ocasionalmente trombando-se mutuamente, sempre soltando fumaça por um tubo localizado em suas traseiras, por vezes parando em locais aonde recebiam de um outro tubo, enfiado na parte lateral de seus corpos, um líquido amarelo que, sendo engolido, parece fazê-los mais felizes pois que saiam dali sempre andando mais depressa. Ainda mais estranho, esses seres terráqueos entram em caixas à beira dos caminhos e, mais surpreendentemente, quando param de caminhar saem de dentro deles uns parasitas, espécie de vermes que se locomovem sobre duas colunas enquanto não usam as outras duas, na parte superior de seus corpos, pois apenas balançam-nas ritmicamente. Imaginaram os marcianos que os terráqueos, de quatro rodas, seriam infinitamente mais felizes se não fossem parasitados por esses monstros de duas pernas que só as utilizam para sair ou entrar nos habitantes terrenos, seus reféns. Curioso que ao saírem os parasitas que os infestam os terráqueos ficam catatônicos já que não mais se movem.

A contabilidade dos dias comemorativos e duas faltas importantes por razões muito diversas
Não comparecendo ao jantar aproveitei a noite em casa para fazer uma pequena contabilidade. São 365 dias no ano. Subtraio 50 que são os domingos. Sobraram 305. Subtraio a totalidade dos sábados já que neles não se trabalha parcialmente, se é que se trabalha: são 50. Subtraio ainda os 23 feriados oficiais, mas que podem ser arredondados para 30 considerando-se benevolentemente o hábito de se usufruir feriados prolongados. Ficam 235 dias. Em janeiro temos o Dia do Fotógrafo, do Farmacêutico, do Jornalista, do Portuário, até do Astronauta (mesmo não os tendo servem para manter nosso complexo de vira-latas) etc., totalizando 11. Em fevereiro contabilizei 5 (Datiloscopista, Gráficos, Zelador, Repórter e o do Esportista); em março o Dia Internacional da Mulher, o Dia do Sogro, do Bibliotecário, do Consumidor e outros, dando 10; em abril não poderia deixar de contar o mais famoso e bem humorado (o da mentira oficial; os outros 364 são os das mentiras não oficiais), do índio (mesmo que em extinção), da sogra (quem ousaria omiti-lo), e para resumir, contei 13; em maio, começo com o Dia do Trabalho em que obviamente ninguém trabalha (o mais ambíguo), chegando a 23; em junho seguem mais 9, sendo um deles o indispensável Dia dos Namorados, mas apenas destes (aqui não se contabilizam as esposas visto que são ex-namoradas embora reclamem muito como se ainda fossem); julho oferta-nos 13, sendo os mais importantes o Dia da Vovó e o do Escritor, (muito comemorado no clube que, em me aceitando como sócio, ficou totalmente desacreditado); agosto permite-nos 18 (o mais famoso o Dia do Advogado, aquele da tradicional “pindura”, coisa típica da fase estudantil e que se aprimora quando exercem a profissão), e inclui o Dia dos Bancários (sendo que todos os demais dias do ano são apenas dos bancos); setembro reserva-nos 13 (o mais importante é aquele que tenho que cumprimentar efusivamente minhas secretárias, e não conto o Dia da Pátria pois que pertence ao pacote dos feriadões); outubro é deprimente porque comemoro simultaneamente três datas angustiantes: a do meu natalício, o Dia Internacional do Idoso (que comemoro há tanto que até se dissipou em minha memória), e o de minha profissão (médico: aquele profissional que estuda muito para se transformar em mero vendedor de receitas), mais o da criança (reservado às mais lindas e inteligentes: meus 3 netos); neste mesmo mês consta o Dia do Dentista que incluo apenas por temê-los, do fundo do coração, pela tortura do tratamento e pela dor muito mais profunda quando da exibição da conta: são 24, incluindo um apenas por merecer todo nosso menosprezo (o Dia da Dona de Casa); em novembro contei 8 (num deles cumprimento o síndico de quem dependemos tanto, ou odiamos com todas nossas forças); finalmente, em dezembro a conta foi de 23, sendo um deles o do “alcoólatra recuperado”, mas nas ruas encontrei sempre caídos apenas os que não se recuperaram, e o do palhaço, ou seja, o de todos nós eleitores (curiosamente no país do futebol há o dia do atleta, mas não o do futebolista). Inexplicavelmente não encontrei o dia de duas profissões. A mais praticada, seguramente a mais antiga e prestigiada: a da prostituta. O sindicato da categoria deveria se manifestar tal como fazem-no movimentos muito mais recentes e até bem menos influentes, como os “sem teto” e os “sem terra”. Também ninguém imaginou incluir o dia do político, ou do parlamentar, ou do legislador, talvez por considerá-lo tão depreciado quanto o da prostituta. Exercesse eu essa última atividade manifestaria com toda veemência repúdio pelo descaso.

A conta é então de 161 dias de todas essas datas profissionais. Para comemorá-las, a rigor, não se deve trabalhar. Concluo que 235 menos 161, facultam pouco mais de 2 meses para o trabalho efetivo no país do feriado e de tantos dias a festejar. Reconheço ter cometido deslize nesta contabilidade: não incluí os feriados religiosos, que não são poucos, mas para um convicto ateu não fazem qualquer diferença: são religiosamente comemorados.

Sinceramente, lamento ter perdido esse ágape em companhia de gente tão simpática. Por favor, convidem-me para o próximo, mas que não coincida com o “dia dos sem carro”, nem com aquele em que se comemora alguma coisa já que considero todos absolutamente relevantes. Se possível, façam-no apenas naqueles únicos 2 meses em que a maioria dos mortais trabalha, mas nos quais continuo impávido descansando. Afinal, ninguém é de ferro. Desde que me aposentei respeito religiosamente todos os dias de todas as profissões que citei, incluindo os óbvios feriados. Neles tenho o bom hábito de me recuperar pela imensa fadiga do ano inteiro.

Saudações a todos.
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EDER C. R. QUINTÃO – É graduado em Medicina pela Escola Paulista de Medicina desde 1959, doutor em Endocrinologia, comendador da Ordem do Mérito Científico pela Presidência da República do Brasil, livre-docente de clínica médica, professor, pesquisador, membro da Academia Brasileira de Ciências e avô orgulhoso de três netos. “São o mais importante feito do meu CV”, segundo ele. Escrever não entra no CV, é paixão.

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