Conversas no Bar II – A Nostalgia e Nelo, por Léo Forte

Cheguei ao nosso bar na hora combinada. Desta vez Nelo foi quem atrasou. Estava faminto, pedi um salgadinho e uma garrafa do vinho. “Não compromete”, como diz meu amigo. Nem ruim nem bom nem barato nem caro, apenas bebível. Saquei da mochila o livro que estava lendo e me entreguei ao prazer do texto e do vinho.

Meia-hora depois Nelo chegou, bufando.
– Passei o dia todo sem ter o que fazer e na hora de sair tinha que aparecer um pepino pra resolver, disse.
– Deixa pra lá, não tem importância. Pensei que estava descontando, por eu ter atrasado no nosso último encontro. Como vão as coisas? Lembrou-se do rosto daquela sua paixão antiga, a Cris, ou ainda acha que está dando os primeiros passos para o Alzheimer?
– Não brinca. Ainda outro dia acordei de madrugada e o rosto dela estava a trinta centímetros do meu. Aqueles olhos azuis, grandes, brilhantes, piscavam para mim. Foi se distanciando, distanciando, e sumiu. Minha boca estava seca e minha garganta até ardia. Tomei um gole da água que fica no criado mudo, virei do outro lado e dormi feliz.
– Você acordou é porque estava com a boca seca dos remédios que toma, principalmente aquele para dormir, e de repente lembrou-se do rosto. Não é nenhuma visita do espírito dela com dezoito anos, como você coloca. Afinal ela ainda está viva, não?
– Fala a voz da racionalidade! Está viva sim, ainda outro dia vi uma foto dela no Face. Está uma coroa meio enrugada mas ainda bonitona.
– É isso, você sonhou, mas antes fez um lifting no rosto dela que a levou dos sessenta e tantos para os 18, não? Deixa a “dona onça” saber que você anda sonhando com outra.
– Sem terrorismo…você não ia trazer um exemplo de um cara nostálgico para encerrarmos de vez o papo do nosso último encontro?
– Sim trouxe, até fiz um texto com mais detalhes sobre o nostálgico e umas músicas, tudo num pen drive que vou te dar, pra você curtir depois. Assim não ficaremos discutindo isso a noite toda como da outra vez. Não tenho mais saco pra esse assunto.
– O que é? Tá nervoso? Até que não foi uma noitada ruim! E, não esqueça, no próximo vou trazer um exemplo do melancólico. Isso se eu gostar do que você vai apresentar.
– Se te conheço, sei que vai. Vamos lá, o sujeito nostálgico mesmo foi Rachmaninoff.
– Aquele compositor russo?
– Esse mesmo. Sergei Vasilievich Rachmaninoff. Vou ler aqui, olha: nasceu em 1873, numa cidadezinha do noroeste da Rússia. Morreu em 1943.
– 70 anos, até que ele viveu bastante para a época.
– Sim, não foi só compositor, foi um excelente maestro e um pianista fantástico! A meu ver, o último e um dos maiores representantes do estilo Romântico na música clássica!
– Pelo que estou vendo, você gosta mesmo do cara.
– Gosto, é um dos meus compositores preferidos. Coloquei no pen drive que vou te dar, além do texto, algumas obras dele, tudo para acompanhar essa sua fase sonhadora romântica…
– Pára com isso, o que eu quero mesmo é conhecer esse nostálgico verdadeiro, como você diz.
– Bom, pra começar ele é tido como um dos pianistas mais influentes, desde seu tempo até os dias de hoje. Sua técnica e ritmo são excepcionais. Curiosamente, suas mãos largas eram capazes de cobrir um intervalo de uma 13ª nota no teclado.
– O que significa isso?
– Significa que o palmo esticado dele, tinha de cerca de 30 centímetros. Que correspondia ao seu tamanho, 1,96 m.
– Pô, era um gigante para a época.
– É, não só no tamanho. Dizem que conseguia executar composições, mesmo muito complexas à primeira audição. Mas como nem tudo é fácil, em 1954 uma importante publicação musical americana classificou sua música como “monótona em textura (…) consistindo principalmente de melodias artificiais e feias” e previu que seu sucesso não seria duradouro. Isso provocou uma reação violenta de outro importante compositor da época, Schonberg, se não me engano. Ele de imediato escreveu e publicou que esta referência sobre a obra de Rachmaninoff “figura entre as mais esnobes e estúpidas jamais encontradas em uma publicação que se diz especializada”..
– Os críticos de obra pronta são foda, muitas vezes falam mal só para aparecerem.
– Porém, não apenas os trabalhos do gigante tornaram-se parte do repertório padrão, mas sua popularidade tanto entre músicos quanto entre ouvintes só cresceu até os dias de hoje. Muitas de suas obras são reconhecidas como obras-primas.
– Ok, mas e a nostalgia?
– Calma já vamos chegar lá. Rachmaninoff nasceu em uma família nobre, que esteve a serviço dos czares. Foi sua mãe quem lhe ensinou piano, mas depois estudou no Conservatório de São Petersburgo e em Moscou. Era craque em composição desde garoto: escreveu uma ópera que lhe rendeu uma medalha de ouro em composição e aos 19 anos já tinha completado um conjunto de peças para piano e seu Concerto No. 1. Um gênio!

Mas a vida dele era complicada: tinha 24, era apaixonado pela prima, mas a Igreja Ortodoxa não admitia o casamento. Na mesma época, estreou sua Sinfonia No. 1 e a recepção foi desastrosa.
Muita coisa para o Rachmaninoff: o resultado foi um colapso mental e um período de depressão. Ele quase não compunha mais.
– Paixão proibida e fracasso é a combinação ideal pra dar merda.
– Mas como não há bem que sempre dure nem mal que nunca acabe, ele fez um tratamento com um psicólogo que havia sido músico amador e aos poucos recuperou a auto confiança. O seu Concerto para Piano No. 2, que estreou em 1901, foi dedicada ao tal do psicólogo. Ele mesmo tocou na estreia. E foi um sucesso, até hoje é uma de suas composições mais famosas. Minha favorita. Mas que sucesso que nada! O pobre apaixonado só recuperou a alegria quando após anos de tentativas finalmente conseguiu permissão para se casar com a prima Natalia. Nunca mais se separaram. Isso foi em 1902.

– Você e suas frases de folhetim. Tudo está bem quando acaba bem, parece filme americano de sessão da tarde na TV.
– Não seja irônico. Qual é seu problema, hoje você está implicante, chato. Toma ai seu vinho e escuta.
– Continuando: a vida dele foi um boa, pode-se dizer. Após várias apresentações como maestro, foi trabalhar no Teatro Bolshoi, mas se demitiu por razões políticas em 1906. Depois disso trabalhou alguns anos em Dresden na Alemanha. Durante todo esse tempo compunha, muito! Voltava para a Rússia todo verão. Também foi para os EUA, como pianista, 1909, se bem me lembro. Compôs o Concerto para Piano Nº 3 para apresentar para os americanos. Virou um músico popular por lá. Veio a Revolução Russa de 1917 e Rachmaninoff junto com sua esposa e duas filhas deixou San Petersburgo e foi para Estocolmo. Nunca mais puderam voltar para casa.
Passou um ano dando concertos na Dinamarca e Escandinávia e mudou-se para Nova Iorque. Sua música foi banida na União Soviética por muitos anos.

– Se ele nasceu em 1873, saiu da Rússia em 1917 aos 44 anos e viveu até os 70, isso quer dizer que ele viveu 26 anos sem voltar para a pátria.
– Esse é o problema, ele adorava a sua terra de origem e sofreu muito com essa separação, daí a nostalgia. Nos Estados Unidos, sua produção musical diminuiu por diversos motivos, mas principalmente por causa da saudade de sua terra natal; dizem que para ele deixar a Rússia foi como deixar para trás sua inspiração. Compunha cada vez menos. Para você ter uma idéia, entre 1892 e 1917, quando vivia na Rússia, ele escreveu trinta e nove composições. Na América, entre 1918 e sua morte em 1943, completou apenas seis!

Lelo pediu mais uma garrafa de vinho e disse:
– Deve ser muito doloroso passar por isso.
O garçom nos serviu, fizemos o nosso tradicional brinde a Bacco’s de garrafa nova e continuei.
– À medida que teve cada vez mais certeza de que não voltaria à Rússia, foi sendo tomado pela melancolia. Muitas pessoas que o conheceram somente nesta época o descrevem como o homem mais triste que já haviam visto.
– É melancolia.
– Sim reflexo da nostalgia. Uma coisa puxa a outra. Muito triste. Gosto muito dos cinco trabalhos para piano e orquestra que escreveu: quatro concertos e a Rapsódia Sobre um Tema de Paganini. Dos concertos, o No.2 e o No.3 são considerados os mais importantes concertos para piano do Romantismo. Dizem que o No. 3 é um dos concertos para piano mais difíceis da história da música, acredita? Não à toa, é um favorito dos pianistas virtuosos. Difícil ou não, Rachmaninoff disse uma vez que sentia o No. 3 “fluir mais facilmente nos dedos” do que o No. 2.
– Não lembro de nenhuma dessas peças. Já devo ter ouvido e agora você me deixou curioso.
– Seguramente você ouviu e muito mais do que você está pensando, mas fique tranquilo, preparei um pen drive para você com todas essas cinco obras e um texto bem detalhado sobre o gigante Rachmaninoff.
Mas você vai lembrar, sim. O Concerto para Piano No. 2 aparece no filme “O Pecado Mora ao Lado” com Marilyn Monroe. A Rapsódia Sobre um Tema de Paganini foi trilha sonora do filme “Em Algum Lugar do Passado”. O filme “Shine” sobre a vida do pianista David Helfgott, gira em torno do Concerto para Piano No. 3.
– Esses filmes todos eu vi, disse Lelo.
– Então você conhece as músicas. Se quiser tenho todos esses filmes, posso te dar uma cópia.
– Boa, vou rever com outra visão. Agora preciso ir embora.
– Calma, a “Dona Onça” já está chamando?
– Não ela não chamou nenhuma vez hoje.
– Estranho, o que está pegando? Ela sempre chama quando você está com “aquele amigo bêbado”.
– Não é toda vez, já te falei que isso faz parte do show dela.
– É mesmo, tinha esquecido, aquela coisa meio intima que você falou no nosso último encontro, vaia contar ou não?
– Se ela souber me mata. Ela não tem nada contra você, nem te acha um bêbado. Depois desses anos todos de nossa amizade ela sabe perfeitamente como você é. Tudo é um jogo: ela pergunta se vou encontrar aquele amigo bêbado, eu confirmo e saio. Depois de um tempo, como você nota ela fica me chamando por mensagem.
– Isso eu sei, e daí?
– Bom, eu ignoro um pouco e depois vou pra casa.
– Também já percebi.
– Quando chego, já é tarde e ela foi dormir, eu deito, ela me abraça, me beija e quase num desabafo diz baixinho, “adoro esse seu cheiro de bebida”. Depois você sabe, as coisas acontecem.
– Ah, quer dizer que esse “seu amigo bêbado” é o sinal de desejo.
– É e daí? E vê se para de chamá-la de “Dona Onça”. Ela é boazinha, delicada, tímida, me ama e gosta muito de você. Te acha um tremendo bom caráter.
– Desculpe, era uma forma carinhosa de falar dela. Olha, não seria mais fácil ela dizer: “hoje to afim de transar ou hoje vamos fazer amor, qualquer coisa do gênero. Pra que tanto rodeio?

– Você é insensível mesmo. Muitas mulheres foram criadas de forma a não revelar esse sentimento. Coisas daquela antiga criação católica. Não se fala em desejo de forma direta nem com o marido.
– Tem razão, não estava atento a isso. Por mim pode continuar, quanto quiserem, com essa história do amigo bêbado. A propósito, mudando e não mudando de assunto, você já viu o filme Paterson?
– Não, ainda não. Já me falaram muito bem do filme.
– É um filme fantástico, recomendo. Delicado, sutil, inteligente, uma poesia do começo ao fim. Em um determinado momento, o casal está deitado na cama. Ela beija o marido e diz “adoro esse cheiro de bebida”. Leva a Eurídice para ver, vocês vão gostar. Se o filme saiu de cartaz me fala que eu te arrumo uma cópia. Esse faz parte da minha coleção.
– Obrigado, agora tenho que ir. Amanhã tenho um compromisso cedo.
– Vou ficar mais um pouco e terminar esse vinho. Amanhã não tenho nada, ou melhor tenho tudo a fazer. Ler o dia inteiro e a noite vou a um concerto. Toma, não esqueça o pen drive do gigante Rachmaninoff.

Lelo pagou a conta, chamou um táxi, na saída disse:

– Tchau, na próxima semana trarei como exemplo de melancólico um cara do jazz. Vou seguir o mesmo método que você: um pen drive com muita informação e música do sujeito. Quem sabe depois disso eu passe a não te achar um analfabéto da grande arte americana, o jazz.
– Hoje você está impossível mesmo! Toda essa irritação é pela falta da chamada “amigo bêbado”?

– Bye bye, a partir de agora você não é mais o amigo bêbado é o “Sinal de Desejo”.
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LEONARDO FORTE (LÉO) – 73 anos, economista, publicitário aposentado, casado, dois filhos e uma neta. Apaixonado por cinema, literatura e música, escreve contos e promove encontros para ensino de jazz.

 

 

 

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