Conexões, substituíveis, insubstituíveis? Por Liliana Wahba


 

 

A cena: um hotel daqueles com estrelas; no terraço situado no alto com vista estupenda, café da manhã abundante e mesas arrumadas com capricho e bom gosto, ambiente ensolarado, despertando o bem viver, o intervalo aprazível entre acelerações e angústias.

Os hóspedes variados, pessoas sozinhas saboreando sua paz, casais jovens ou maduros, alguns com crianças maiores. Poderia ser uma pintura, um momento a gravar na memória, repleto de beleza e harmonia. Sem gritos, sem hostilidade, ali, sem fome ou miséria. No alto.

Numa mesa um homem de uns 30 e poucos com uma menininha de aparentemente dois anos, amoroso e um tanto distraído, oferece garfadas de comida à criança enquanto ela manipula absortamente um tablet. O pai ensimesmado, retoma a tarefa periodicamente, parece um ritual compassado, uma garfada, uma colherada na boca da menininha, cabelos cacheados com tiara, sentadinha e muito bem comportada.

Eis que se aproxima a mãe, jovem, esportiva, de óculos escuros, senta à mesa com um prato de frutas e toma seu café lançando um olhar oblíquo à menininha, como que conferindo que está tudo bem. Está; a garotinha continua comendo agora uma pêra cortada oferecida pelo pai, na boca, suas mãozinhas ocupadas com o tablet. O casal troca umas palavras rápidas, se servem de pãezinhos e croissants. Quando um garçom se aproxima, parecem despertar e perceber onde estão, e então pedem uma foto, claro.

O trio está sentado, pai e mãe na frente e a pequena na cadeira de trás, o plano da foto somente abarca o casal que faz pose e um sorriso para a câmara, a garotinha nem olha, está ocupada, arrumadinha, não interfere, não incomoda; clic; voilà: desapareceu!

 

LILIANA LIVIANO WAHBA – Psicanalista junguiana. Profa Dra da PUC-SP. Diretora de Psicologia da Associação Ser em Cena – Teatro de Afásicos. Autora de Camille Claudel: Criação e Loucura.

 

2 comentários

  1. Cena perfeita se não houvesse um olhar aguçado que sabe ver além das aparências, um olhar que já viu muita água passar pelo rio. Se não houvesse uma mente imaginativa atrás de um olhar aguçado, que a partir de um flash, imagina mundos.

  2. Alguém disse [um lacaniano? O próprio Lacan?] que as mães esquizofrenogênicas [palavrão, sorry] se comportam diante dos filhos como um turista diante da Torre Eiffel. O turista viaja léguas – e, quando finalmente encontra a torre, dá as costas para ela, seu objeto-fetiche; que vale [apenas] para um clic.
    A torre existe para ser exibida – e não fruída. E não conhecida…

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