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Clemari Marques e o samba

A vida dela era o samba. Desde pequena assistia a todos os desfiles das escolas de samba. E foi envolvendo-se cada vez mais, até que chegou ao mais alto posto: rainha da bateria.

Nunca se envolveu com ninguém, pois seu único amor era o samba. Trabalhava a semana toda, o dia inteiro em um salão de beleza, até que resolveu montar o seu, no fundo de casa. Trabalhava duro a semana toda. Fim de semana era da escola.

A escola formal mesmo, só fez até o Ensino Médio. Parou quando teve certeza do que queria na vida. Na verdade, desde pequena sonhou em ser bailarina, mas na realidade onde cresceu, ser bailarina clássica, não era para a sua cor.

Com quase trinta anos, em um dos desfiles mais emblemáticos da escola, um empresário alemão apaixonou-se por ela. Amor mais do que à primeira vista; instantâneo.

Ele aguardou o final do desfile e correu para o galpão da escola vencedora, que tinha aquela deusa como rainha de bateria. Milhares de pessoas comemoravam emboladas cantando e dançando a vitória. Foi difícil de encontrá-la, mas quase ao raiar do dia ele conseguiu chegar pertinho dela. Não imaginava como iria declarar sua paixão, pois não falava nada de português. Olhou para ela, ela olhou também para ele e nada mais precisou ser dito. Os dois corpos entenderam-se de imediato. Pegou nas mãos daquela deusa e foram caminhando para fora do salão. Preto no branco. Estava escrito. Desde que resolveu sair do frio germânico, para se aquecer nos trópicos. Para dançar samba. E ser feliz. Chamou um táxi e ela o acompanhou, sem ter a menor ideia de onde iria parar.

Pararam em uma praia deserta ao alvorecer.

Desceram. Deitaram na areia fresca, com os pés na beira da água para refrescar as bolhas e ficaram em silêncio ouvindo o barulho encantador das ondas, quebrando suaves na maré baixa e aguardando as últimas estrelas se retirarem para dar lugar ao rei Sol.

Eram apenas eles dois, naquele amanhecer deserto de quarta-feira de cinzas.

Caminharam um pouco por entre uma vegetação próxima e ali mesmo fizeram amor. Chegaram bem pertinho do céu que acendia, incendiando os dois amantes. Depois tomaram um belo banho de mar. Desses que faz a alma renascer e o mundo todo adquirir um novo significado.

Ele falava em alemão, ela em português e daí para frente os dois sempre se entendiam perfeitamente. Depois de passarem o dia passeando pela praia,  ela o levou e ele dormiu na casa dela, no subúrbio.

No dia seguinte, ele levou-a para passar o dia no hotel de luxo onde ele estava hospedado.

Foi quando o espelho do sonho trincou.

Na portaria, o informaram que o hotel não permitia visitas de prostitutas nos recintos do hotel. Ele explicou em inglês, que o recepcionista dominava, que ela não era uma prostituta, era sua amiga, enquanto ela, sem jeito, se escondia na sombra daquele homem branco enorme. Mais uma vez o porteiro desculpou-se, mas ele não tinha autorização para deixar entrarem pessoas daquele tipo no hotel.

– Que tipo? – o homem branco perguntava indignado.

– É uma pessoa como qualquer outra qualquer…

– Não aceitamos negros, senhor.

– Como assim? Não aceitam negros? Vocês não têm que aceitar nada.

– Eu estou pagando. Qualquer pessoa que queira trazer comigo é por minha conta, não importa se é verde, vermelha ou preta! – berrava o homem indignado.

Ela puxou-o de lado, tentando manter uma certa invisibilidade, apesar de seus 1,80m e sua beleza estonteante.

– Vamos voltar para minha casa. Já sei que isto não vai acabar bem. Você não imagina cada história que já aconteceu por aqui.

Mas ele recusava-se a entender. Ignorava o que ela dizia e continuava gritando em inglês com o rapaz que também estava sem graça. Pegou o interfone e chamou seu gerente para resolver a situação. Mas o outro também não resolveu nada. Regras são regras.

Ah, se ela pudesse falar a mesma língua que ele… se pudesse explicar o quanto já sofrera preconceito neste país que se dizia sem preconceitos. Se pudesse convencê-lo de que podiam ameaçar ou até chamar mesmo a polícia, pois aquilo era crime, mas que não valia a pena, diante de todo o transtorno que iriam enfrentar. Enquanto aquele homem branco tentava argumentar ela foi afastando-se lentamente até sair pela rua. Caminhou com as lágrimas escorrendo pela face de ébano perfeita. Tinha certeza de que encontrara o amor da sua vida. Fez sinal para o ônibus que passava e voltou para seu bairro na periferia. Sabia que ele iria atrás dela, então pediu para ficar uns dias na casa de uma amiga. Não havia a menor chance de haver um final feliz para aquela situação. Contaram pra ela que ele esteve várias vezes procurando pela amada e até chegou a dormir uma noite inteira na porta do barraco. Mas ela resistiu.

Quando finalmente, ele não apareceu mais, ela imaginou que suas férias deveriam ter acabado e ele voltara para seu país. Retornou para casa. Fez uma faxina. Reabriu seu salão de beleza.

Esta era sua vida. Logo começariam aos ensaios da escola para o novo ano.

No momento, apesar do fogo que ainda queimava no seu peito, seguiu sua vida em frente.

Só sentiu sua alma esfriar quando atendeu aquela mulher branca. Linda. Aparentemente rica e estudada. Talvez de origem alemã. Puxou conversa como fazia sempre.

A mulher explicou que queria dar uma arrumada geral. Corte, tinta, escova, unhas dos pés e das mãos.  Contou que andou muito tempo relaxada de si mesmo. Mas a filha não estava gostando disso. Queria que a mãe se arrumasse, retomasse sua vida e seguisse em frente.

– Ah, você tem uma filha? Só ela, ou tem mais? – perguntou

A mulher ficou pensando por alguns instantes.

– Eu tenho um casal. Um filho e uma filha. – respondeu meio em transe.

– Que delícia! – quantos anos eles têm?

– Eles morreram…Em um desmoronamento no morro de Angra, naquelas enxurradas do verão passado…Meu marido também morreu…E minha mãe, meu pai, minha irmã e meus sobrinhos…Não tenho ainda condições de responder mais perguntas…

– Saí do hospital há um mês, depois de seis meses internada entre a vida e a morte. Ainda não sei direito quem sou agora…

– Hoje acordei e pensei que minha filha, que gostava de me ver arrumada, devia querer que eu viesse e entrei no primeiro salão que encontrei. É isso. Fim. Por hoje, dê apenas um jeito no meu rosto.  Na alma, não sei se terei como dar um jeito algum dia…

Perplexa, esquecida automaticamente de sua desventura, ela só podia fazer uma pergunta mais:

– Aceita um café?

Às vezes, as palavras não dizem nada.

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