blog Clube dos Escritores 50 Carlos Schlesinger Jerusalem

Carlos Schlesinger em
Se eu me esquecer de ti, ó Jerusalém…

São muitas as Jerusaléns, todos sabem. Também as minhas. As imaginárias e as vividas. As épicas e as reais. A da Cidade Velha, que apelidei de Disney das Religiões, com o Muro Ocidental – Kotel Ha Maaravi – que não é chamado em hebraico de Muro das Lamentações. A do Santo Sepulcro e do Calvário, com as procissões de ortodoxos, onde vi padres jovens em verdadeiros transes. A das lindas mesquitas, do Domo da Rocha, de onde Maomé teria partido para os céus e onde Abrahão sacrificaria seu filho Isaac, se não tivesse sido impedido .

Essas são as públicas, mas tenho três só minhas.

I- No Museu do Holocausto

E assim foi que eu visitava, mais uma vez, o Museu do Holocausto, para ficar horrorizado, não com os objetos sinistros de exibição,  mas com tenebrosos relatórios oficiais. A cada estação em que os trens paravam, recebiam carimbos oficiais dessa recepção documentos de Estado, guias de encaminhamento de trens com milhares de judeus, homens, mulheres, idosos e crianças, com a eficiência nazista, até seu literal destino final. Como se fossem entregas de objetos pelos correios. Aterrorizante.

Saí, para colocar uma pedra numa árvore plantada em memória de Oskar Schindler. Os judeus não colocam flores em túmulos ou monumentos, mas pedras, pela sua perenidade.

Na saída, vejo um ônibus chegar e assisto o desembarque de seus ocupantes, todos falando alemão e indago ao porteiro quem são. A resposta foi que eram visitantes alemães não-judeus e que isso era constante. Vinham para ver, porque não acreditavam. Eu não perderia essa oportunidade. Comprei outro ingresso e me misturei a eles, para observar. Os semblantes mudaram, da descontração do desembarque para o horror e a compunção.

As mulheres choravam. Os homens viravam o rosto, confrontados com as exibições de fotos, documentos, objetos e relatos.

E nesse momento, perdoei os inocentes alemães que pagavam a conta que não era deles.

II- Conversão forçada

E também assim foi que vagava pelas vielas da Cidade Sagrada , quando fui chamado por um árabe, de keffieh na cabeça, em frente a uma igreja. Perguntou-me se eu queria ver o local onde nascera a Virgem Maria. Eu disse que sim, até porque ele portava uma chave antiga, meio enferrujada. Contou-me que a sua família cuidava dessa igreja há séculos e em nome de meus amigos cristãos, e de minha curiosidade natural, entrei com ele. Uma igreja comum, com uma escada em caracol, por onde descemos. Um lance. O nada. Outro lance, e outro nada. Cogitei da possibilidade de estar sendo levado para as profundezas eternas e de ser esfaqueado por aquele simpático cidadão e sugeri que não queria descer para os reinos de Hades, mas ele insistiu e, negociando comigo mesmo, concordei em descer mais um lance, somente.

E ali estava, em uma gruta linda, um monte de rosas frescas, talvez com mais de metro de altura. Admirei aquele local, sua sacralidade, em silencio respeitoso.

Foi nesse momento que me foi oferecida, com pompa e circunstância, uma vela e uma caixa de fósforos para a oração que a ele parecia inevitável e obrigatória. Fiz um sutil sinal de negação e recusei, por coerência pessoal, vela e fósforo.

O semblante mudou e a pergunta me foi dirigida de forma incisiva:

– Aren´t you a Christian???

Pois Yhaweh que me perdoe, mas a três lances de profundidade, em uma igreja escondida, eu, solitário em Jerusalém, acedi e acendi.

III- A Christmas Carol

Pois se deu naqueles dias que perambulávamos , eu e minha companheira, por Jerusalém, ao entardecer de um dia de chegada. Eu, desconsolado com as promessas da agência de viagem que conseguira me impor um hotel com vista para a cidade. A vista era para a cidade nova de Jerusalém, igual a todas, no nível das máquinas de ar condicionado, de todo inúteis, por sinal. O quarto abafado, a visão da parafernália mecânica, ventiladores e um frigobar que só não estava vazio pela abundância de insetos que ali habitavam, vivos, mortos e moribundos. Recusei-me a entrar e intimei a agência a obter uma reserva em outro hotel que me parecia ótimo, bem localizado, mas que estava completamente ocupado.

E por isso, caminhávamos, eu, zangado, e a minha companheira, nem tanto, pela Jerusalém meio vazia, ao entardecer, aguardando o resultado das pressões sobre a agência, que dizia ser impossível a solução.

E de repente, comecei a rir, me dando conta de que, como José e Maria, estávamos ambos procurando um lugar para dormir, numa cidade cheia, na noite de 24 de dezembro.

O telefone soou. Um milagre ocorrera e o hotel maravilhoso acolheu os peregrinos involuntários.

14 comentários

  1. Carlos,

    Judia tbm, filha de imigrantes alemães, preciso lhe pedir” perdão” assim como você fez na gruta da Virgem Maria com medo de um revide.
    Nao penso assim como diz o seu texto – aliás esta uma das pouquíssimas certezas que tenho: nao tenho como perdoar os alemães que deixaram acontecer. Sabiam sim, salvo atos heroicos , admiráveis e humanos que houveram a parte; nao me serve chorar sobre o leite derramado.
    Culpa? Fico com Hannah Arendt que foi massacrada pelos judeus ao julgar Eichmann e o nazismo como “o mal da banalidade” ou afirmar que “Há um pequeno Eichmann em cada um de nós”!
    Eu acredito neste perdão!
    Basta um Bolsonaro para comprovar a tese de Arendt…..

    ** Carlos, meu nome de solteira é Scheier. Acho que seus pais foram conhecidos dos seus. Pode ser? ( os meus voltaram para a Alemanha em 76 e lá estão enterrados, em Zalzburg, cidade vizinha ao ninho da águia de Hitler para onde se mudaram. (Talvez se tivessem perdido algum parente carbonizado pensariam duas vezes!) Somos e fomos uma família de judeus meio que apócrifos, talvez… por esta razão identifico-me com HArendt

    Desculpe o longo do texto aqui!….

  2. o frigobar não deixa de ser uma metáfora sinistra ;

    igualmente sinistro é o aviso que apareceu agorinha mesmo quando tentei publicar o comentário acima:
    ” comentário repetido; parece que você já disse isso “;
    moi ? never !
    o meu humilde comentário espontâneo e inédito ganhou status de déjà vue .

  3. Carlos, Israel não é um País para se conhecer através de agência de viagens ( hotel, transfers), e o povo alemão é estranho mesmo!! Não saber o que aconteceu é no mínimo omissão! De resto, o relato é maravilhoso!!

  4. Interessante esse relato, Carlos. Fiquei com uma dúvida: a maioria dos textos referem que Maria nasceu em Nazaré, porém há também(mais rara) a citação do nascimento dela nessa gruta em Jerusalém. Você chegou a pesquisar mais a fundo sobre essa informação?

  5. Meu querido, eu sorri lendo sua crônica, pela familiaridade que você me transportou ao caminhar pelas ruas de Jerusalém, mas uma lágrima escapou ao lembrar do meu paidrasto que me levou pela 1a vez c meus irmãos e nos ensinou tudo daquele lugar, e, principalmente, de lembrar das lágrimas de minha mãe ao sair do Yad Vashen aos prantos- coisa rara de ver em D Judith- vc bem sabe. Obrigada pela sua caminhada lá e cá…

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *